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O Negócio Chamado Futebol: quando clubes se tornam empresas

Atualizado: 19 de nov. de 2020



112 bilhões de reais. Esse foi o valor movimentado pelo futebol europeu na temporada 2016/2017. Isso é mais que o PIB de 99 países na mesma época, como Paraguai, Hungria e Uruguai. Com tamanha notoriedade financeira, foi inevitável que o esporte deixasse de ser apenas um jogo movido pela paixão de jogadores e torcedores, tornando-se um verdadeiro negócio, movido por empresas, patrocinadores e cifras bilionárias.


Ao longo do tempo, esse processo foi se intensificando tanto que, hoje, a maioria dos times da Europa já possuem uma filosofia empresarial de gestão. Essa maneira de enxergar os clubes é uma tendência mundial, no entanto, está presente nas mais variadas intensidades. Esses diferentes graus devem-se, em grande parte, à cultura regional das ligas ou até mesmo dos torcedores locais.


Ajax S.A.

O mercado financeiro, por exemplo, é um ramo que pode agregar muito ao esporte. Diversos times do mundo possuem o status de sociedade anônima, encarando a sua administração como tal. Mesmo aqui, na América Latina, essa decisão tem sido bastante positiva para a saúde econômica de alguns clubes, o que influencia diretamente na performance nos gramados. O pioneiro desse movimento regional foi o Colo-Colo, do Chile.


Em 2002, o clube declarou falência e, então, três anos depois, tomou a decisão de fundar uma sociedade anônima para cuidar de todas as questões administrativas. Nesse mesmo ano, o Colo-Colo foi o primeiro time de futebol da América a fazer um IPO, que é quando as ações da empresa são ofertadas para o público geral pela primeira vez na bolsa de valores. A nova estrutura da gestão administrativa passou a contar com duas cadeiras do conselho tradicional e outras sete para gestores nomeados pelos acionistas. Assim, as decisões não eram mais tomadas exclusivamente por dirigentes com carreiras limitadas ao esporte. Dessa forma, a abertura de capital arrecadou U$31,7 milhões de receita, o que foi suficiente para pagar todas as dívidas e ainda reformar o estádio. A resposta também foi positiva dentro das quatro linhas, já que, desde a mudança, conquistaram sete títulos nacionais. Almejando atingir o mesmo sucesso, times rivais como a Universidad de Chile e a Universidad Católica também abriram seu capital alguns anos depois, arrecadando, respectivamente, U$15 milhões e U$25 milhões.


Já no Brasil, a história foi bem diferente. Os times brasileiros são classificados como associações sem fins lucrativos, o que limita a entrada de investimentos externos e, consequentemente, os horizontes da liga nacional se estreitam. Já houve algumas tentativas no congresso para torná-los sociedades anônimas, contudo, os partidos e segmentos de dirigentes das maiores instituições possuem muita influência política e dificultam esse processo. Apesar disso, essa tendência cada vez está mais forte, sendo possível que vejamos essa mudança ocorrendo ainda na próxima década, o que abriria um amplo leque de opções aos clubes. O Flamengo, por exemplo, poderia seguir o gigante Bayern de Munique e vender uma parte de suas ações para a Adidas, o Fluminense poderia ofertar cotas para financiar melhorias na sua sede ou o Corinthians, com seus quase trinta milhões de torcedores, poderia faturar centenas de milhões de reais com um IPO.


Recentemente, inclusive, tivemos um ótimo exemplo do funcionamento de times listados na bolsa de valores. O Ajax, time holandês com capital aberto desde de 1998, teve uma alta histórica de 9,45% nas suas ações após a vitória sobre a Juventus de Cristiano Ronaldo pelas quartas de final da Champions League, quase dobrando o valor da ação desde o início da competição. O clube tem gerado uma rentabilidade bastante satisfatória para seus investidores, conforme jovens jogadores como de Ligt e David Neres encantam com seu jogo ofensivo, alcançando um aumento de cerca de 700% no preço de sua ação em apenas dois anos. Quem antecipou a forte ascensão do Ajax ganhou muito dinheiro investindo. Agora, entretanto, após ser eliminado nas semifinais pelo Tottenham, as ações tiveram uma queda de 20%, demonstrando a volatilidade da bolsa de valores e o quanto essa característica pode ser acentuada no meio esportivo. Além dele, outras equipes importantes como Juventus, Manchester United e Borussia Dortmund estão abertas para acionistas. Com a expansão dessa cultura, um entusiasta do esporte não dependerá mais de casas de apostas ou empregos no ramo para extrair lucro de seu conhecimento, tendo a possibilidade de aplicar seu dinheiro na bolsa de valores e faturar de acordo com os resultados dos jogos.


Gráfico com a evolução das ações do Ajax pelo tempo, destacando alguns marcos positivos antes da eliminação na Champions League

Optar pelo modelo de sociedade anônima leva a uma revolução no funcionamento interno das equipes. Como ônus, surge uma série de responsabilidades fiscais e impostos intrínsecos à operação de uma empresa. A gestão, no entanto, vigiada por acionistas e membros que de fato possuem seu próprio dinheiro aplicado no clube, tende a ficar mais consciente. A Universidad Católica, por exemplo, possui mais de 70% de seus atletas formados nas categorias de base, pois as contratações são feitas de forma extremamente cautelosa, sem colocar riscos desnecessário para os investidores. Surgem ainda diversas outras questões relacionadas à administração empresarial, como o equilíbrio entre a distribuição de dividendos e a alocação de recursos para a infraestrutura interna ou a preocupação com o desempenho, não mais só nas tabelas de campeonatos, mas também nos gráficos de desempenho econômico da “empresa”.


Bragantino Com Asas

Outra forma de um clube ser diretamente introduzido ao mundo dos negócios é justamente o caminho oposto, ao invés dele se adaptar ao âmbito empresarial, uma empresa entra efetivamente no jogo. Esse é o caso do alemão Wolfsburg, que pertence à Volkswagen, do Bayer Leverkusen, criado pela companhia farmacêutica Bayer, e até mesmo do Audax, clube paulista controlado pelo grupo Pão de Açúcar. Entretanto, hoje o exemplo mais emblemático é o projeto da Red Bull para o futebol. A referência mundial em bebidas energéticas é conhecida pelo constante patrocínio em esportes radicais, sempre marcando presença nos X Games e em outros eventos do tipo. A marca é dona de uma equipe de Fórmula 1 (RBR) e até patrocina o Neymar, mas, mesmo com tamanhos investimentos, uma de suas apostas mais ambiciosas é conquistar relevância com times de futebol.


Esse projeto teve início em 2005, com a compra de um time do mesmo país da sede da firma, a Áustria. Ele passou a ser chamado de Red Bull Salzburg e, com a consequente injeção de capital, teve um sucesso instantâneo, ganhando a liga austríaca na temporada 2006/2007 e em mais oito outras ocasiões desde então. Com isso, o mesmo processo foi repetido em outros países, com o surgimento do New York Red Bull, Red Bull Gana e, o maior sucesso até então, RB Leipzig, no qual RB é a abreviação de Rasen Ballsport, que significa “esporte com bola no gramado” em alemão. Esse nome foi colocado porque a federação alemã não permite a utilização do nome de empresas em times e, dessa forma, pelo menos a abreviação faria uma referência, deixando clara a forte oposição a isso no país desde os primeiros passos. O maior representante da marca nos gramados superou expectativas e passou da quinta para a primeira divisão da Alemanha em apenas sete anos, conquistando o vice-campeonato em uma das ligas mais disputadas do planeta, batendo de frente com um dos maiores clubes da Europa, o Bayern de Munique, logo no primeiro ano dentro na elite alemã. Atualmente, o Leipzig está novamente disputando as posições de cima da tabela do campeonato alemão e, apesar dos resultados impressionantes, já é considerado um dos times mais odiados da história. Isso ocorre por conta da resistência das torcidas adversárias e, inclusive, uma parte mais conservadora dos torcedores do próprio clube, em aceitar essa nova abordagem do futebol, classificando-o como um “time artificial”, que coloca interesses financeiros na frente da paixão. Esse ódio é tão difundido no país que é comum ver protestos e bandeiras condenando o queridinho da Red Bull.


Houve até um episódio em que um tablóide local divulgou a classificação do campeonato substituindo nome do Leipzig por “vendedor de latas”, explicitando o repúdio de parte dos fãs em relação ao modelo do clube.


O Brasil também não ficou de fora e em 2007 foi fundado o Red Bull Brasil, com o plano de chegar na série A do brasileirão em até dez anos. No entanto, os resultados não saíram como o planejado e o time não satisfez os interesses dos investidores austríacos. Diante disso, a empresa, esse ano, decidiu tomar um caminho mais curto e investir em um clube brasileiro que já possuísse alguma representatividade, o escolhido foi o Bragantino, de Bragança Paulista. O investimento inicial feito agora no clube foi de R$45 milhões e a folha salarial quintuplicou, chegando na casa dos R$2 milhões. Essas são quantias bastante significativa para a realidade do futebol nacional. Tendo em vista que gigantes como Corinthians e Internacional investiram menos que isso em contratações esse ano, podemos entender a magnitude desse negócio para um clube que atualmente compete na segunda divisão do campeonato brasileiro. O projeto tem como objetivo tornar o RB Bragantino o quinto grande clube paulista, prometendo um financiamento progressivo de acordo com as conquistas alcançadas. Se subir para a série A nessa temporada, por exemplo, receberá R$200 milhões da empresa, o que é quase o valor de toda a receita do Santos em 2018. Além disso, ainda existem especulações sobre a venda do CSA, de Alagoas, que acabou de subir para a primeira divisão, por R$100 milhões para uma empresa chinesa. Seguindo esse caminho, com a ascensão monetária de clubes pequenos, podemos ter uma nova classe de gigantes do futebol brasileiro, fato que já é comum em outras ligas mundo afora.


A Premier League, da Inglaterra, conta com times, como Chelsea e Manchester City, que hoje são protagonistas e multi-campeões graças a investimentos como esses, que tiraram-os da mediocridade. A Ligue 1, da França, é dominada por PSG e Mônaco, ambos com elencos sustentados por investimentos externos. Já em outro patamar de integração, a MLS (liga dos Estados Unidos) funciona como uma grande firma, que tem os clubes como associados. Assim, surgem regras como limites salariais que equilibram os times, deixando a liga mais disputada e apelativa para o público. Além disso, o branding é um conceito empresarial que foi muito bem aproveitado pela UEFA Champions League, por exemplo. Um jogo da champions pode ser facilmente reconhecido apenas olhando para o seu placar, que sempre conta com a logo e os clássicos tons de azul. Essa fácil associação vai muito além disso, estando presente na bola estrelada, no icônico hino, na taça que já caiu na graça das torcidas e até nos originais comerciais da Heineken nos intervalos. O Brasil poderia aprender muito com esses outros modelos. Temos uma liga mal administrada por uma instituição com o nome manchado pela corrupção, clubes com gestões que beiram o amadorismo, embarreiramentos culturais para investidores e com uma marca nada associável. Muitos fãs nem lembram como é o troféu e dependem dos comentaristas para descobrir se o jogo da televisão é do brasileirão ou outra copa.


Tradição x Progresso

Esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos da adesão ao mundo dos negócios, levando-nos a pensar: o que realmente sustenta o futebol moderno? Será que a resposta ainda é a utópica paixão dos torcedores ou passou a ser o ímpeto consumista do público que aderiu ao esporte mais popular do mundo? Provavelmente há um pouco dos dois, no entanto, o movimento histórico tende à resposta menos romantizada. A partir disso, surgem questionamentos que podem abalar os pilares mais consagrados pelos fãs. Até que ponto os clubes efetivamente dependem de torcedores? Os times da Red Bull, por exemplo, possuem médias de público extremamente baixas e ainda assim conseguiram uma projeção notável em pouco tempo. Um clube bem-sucedido será aquele que ganha mais títulos ou o que gera mais dinheiro? Posto como empresa, fazer investimentos renderem ou distribuir mais dividendos, agradando os mais variados tipos de investidores, pode vir a ser o mais significativo indicador de desempenho.


Mesmo com todas as aparentes vantagens e desvantagens pontuadas da evolução do que entendemos como o jogo, tudo que tange o coração torna o debate muito mais complexo. Ao mesmo passo em que não se pode ceder a tradições irracionais que impeçam o progresso do esporte, também não é admissível que o ceticismo e obsessão pelo lucro diluam a magia daquele classificado por Millôr Fernandes como “o ópio do povo e o narcotráfico da mídia”. Não seria coerente avaliar tamanha paixão sem levar em consideração a sensação de subir as arquibancadas de um estádio pela primeira vez, as incontáveis gerações que tinham e continuam tendo o sonho de ser jogador de futebol ou os fiéis torcedores com compromissos semanais com seu time. Encontrar o equilíbrio entre ideais que, em um primeiro momento, se mostram opostos certamente não é trivial. No entanto, com o bom senso dos dois lados, todos os envolvidos poderão ser favorecidos, melhorando a experiência futebolística como um todo. Adotando filosofias empresariais, é natural que mais dinheiro entre, o que leva a melhores infraestruturas, jogadores mais bem treinados, coberturas midiáticas mais completas e alcance estendido. O sentimento sempre será a força motriz desse gigantesco negócio, afinal, os 112 bilhões de dólares nunca seriam movimentados sem o atemporal brilho nos olhos de seus amantes.

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