“Quando as autoridades do Talibã apresentaram o primeiro condenado a chibatadas no estádio de futebol, meu coração começou a bater tão rápido que pude ouvi-lo.” É assim que um afegão de 21 anos descreve a sensação de presenciar o governo punir fisicamente 22 pessoas - duas das quais eram mulheres - em frente a uma multidão. Tal cenário demonstra o terror implantado pelo grupo extremista ao governar o Afeganistão, desafiando diversas potências mundiais que, lideradas pelos Estados Unidos, lutaram por quase duas décadas para mantê-los longe do poder.
A origem
Formado por ex-guerrilheiros conhecidos como mujahidin¹, o Talibã surgiu na década de 1990 no norte do Paquistão após a retirada das tropas soviéticas do território afegão. Atuando em uma área que abrangia ambos os países, o grupo extremista expandiu rapidamente a sua influência com a promessa de restaurar a paz e a segurança por meio da imposição da sua própria e inflexível visão da Sharia², com a obrigatoriedade de orações islâmicas diárias e padrões estéticos radicais.
Pouco depois de sua formação, no final de 1995, a organização tomou a província de Herat - na fronteira com o Irã - e, um ano depois, derrubaram o regime do então presidente, Burhanuddin Rubbani, a partir da a ocupação de Cabul, capital do Afeganistão. Com um ritmo acelerado de expansão, em 1998, o Talibã já controlava quase 90% do território nacional.
Conquistando a confiança inicial da população por terem erradicado a corrupção, o grupo foi capaz de agir com muita rigidez perante os afegãos, de acordo com a sua interpretação extremista da Sharia. Nesse contexto, foram instituídas penas radicais, como execuções públicas de supostos assassinos e adúlteros, além de amputações de ladrões. No entanto, mesmo depois de diversas acusações sobre violações dos direitos humanos, a influência do Talibã continuou crescendo significativamente, suportada principalmente pelos apoiadores da insurgência religiosa. Assim, esse apoio só veio a cair por conta da interferência direta norte-americana e da Guerra do Afeganistão.
A Guerra do Afeganistão
Em 11 de setembro de 2001, uma série de ataques terroristas nos Estados Unidos mataram cerca de 3 mil pessoas e destruíram um dos maiores símbolos do poder econômico estadunidense, o World Trade Center. Ao identificar Osama bin Laden, líder do grupo extremista Al-Qaeda³, como o responsável pelo atentado, os EUA buscaram apoio da OTAN⁴ para encontrá-lo e acabar com a sua formação terrorista.
Com suspeitas de que o fugitivo estaria sendo acobertado e financiado pelo governo afegão - na época controlado pelo Talibã -, uma coalizão foi estabelecida com nações colaboradoras, como a França, a Alemanha e o Reino Unido, e, em outubro do mesmo ano, a potência americana lançou ataques aéreos contra o país. Desse modo, o Talibã viu sua influência diminuir com o conflito da OTAN com o Afeganistão e suas medidas contra o regime extremista, o que possibilitou a presença de forças ocidentais em Cabul e a formação de um governo apoiado pelas potências invasoras.
Apesar da oposição de exércitos estrangeiros e dos soldados afegãos, o grupo não foi extinto e continuou realizando atentados, o que os permitiu retomar sua influência política gradativamente. Depois de quase duas décadas de ocupação ocidental, em 2020, a organização terrorista e os EUA assinaram um “acordo para trazer a paz” ao Afeganistão, segundo o qual os militares da OTAN concordavam em se retirar do país em troca do compromisso do grupo de agir pacificamente e impedir que a Al-Qaeda ou qualquer outra organização terrorista operasse dentro do território. Entretanto, menos de dois meses depois da retirada completa das tropas, em 2021, os extremistas conseguiram ocupar o palácio presidencial afegão, retomando o poder do país.
A potência do Talibã
Durante a ocupação americana no Afeganistão, as tropas talibãs foram retiradas do poder e eleições livres foram realizadas ainda em 2001, escolhendo primeiramente Hamid Karzai como líder provisório e, três anos depois, elegendo-o como presidente. No entanto, nem mesmo as iniciativas ocidentais foram capazes de frear os terroristas. Apesar dos mais de 100 mil militares mobilizados e do investimento de US$83 bilhões, as forças ocidentais não evitaram a ocorrência de ataques de homens-bomba talibãs, por exemplo. Então, com o fim da coalizão, o grupo pôde se reerguer rapidamente, tornando-se, atualmente, o empreendimento mais poderoso do país.
Dessa maneira, é possível perceber que o combate total do Talibã é uma tarefa mais complexa do que se aparenta. Isso se deve, essencialmente, por dois pilares principais que sustentam tal status: o poder econômico e o poder pelo terror.
Poder econômico
Listado pela Forbes, em 2016, como a quinta organização terrorista mais rica do mundo, com um faturamento de US$400 milhões, o Talibã, nos cinco anos seguintes, quadruplicou seu patrimônio. De acordo com um relatório confidencial da OTAN, o orçamento do grupo para 2019-20 foi de US$1,6 bilhão, contrastando fortemente com o debilitado governo oficial afegão, muito dependente de investimentos estrangeiros para se manter.
Considerando que grande parte do montante é, segundo a ótica ocidental, obtido de maneira ilegal ou extra-oficial, um estudo da BBC elencou as principais fontes:
Doações internacionais Enquanto diversos afegãos e autoridades americanas acusam o Paquistão, o Irã e a Rússia de financiarem o Talibã, milionários paquistaneses e de vários países do Golfo⁵ são considerados os maiores investidores da causa terrorista. Além disso, uma empresa chinesa, interessada no petróleo da região, e entusiastas religiosos são outros apoiadores do movimento. Entretanto, mesmo que seja muito difícil realizar uma pesquisa precisa, esses recursos são considerados como uma parcela significativa do faturamento talibã, com estimativas de uma soma de US$500 milhões anuais.
Tráfico de drogas O Afeganistão é tido como o maior produtor de ópio⁶ do mundo, com uma exportação anual que lucra entre US$1,5 bilhão e US$3 bilhões, suprindo 84% da demanda global e gerando 12 mil empregos no país. Ao se aproveitar desse mercado, o Talibã controla as áreas de cultivo e arrecada 10% sobre todas as fases da produção, incluindo o refino e a distribuição por meio dos traficantes que fazem o contrabando da droga. Estima-se, assim, que tal prática resulta em um ganho que varia de US$100 milhões a US$400 milhões para a organização e o comércio de drogas corresponde a até 60% do montante.
Extorsão das áreas controladas Além das tarifas cobradas de fazendeiros, o Talibã determinou que a comercialização de diversos bens, como combustíveis e materiais de construção, seria taxada em 2,5% quando seus vendedores viajassem por áreas controladas pelo grupo. De maneira complementar, ao destituir o Governo Civil do Afeganistão, a organização tomou também o controle das principais rotas do país, assim como postos nas fronteiras, gerando mais uma fonte de arrecadação sobre as transações internacionais.
Mineração Outra fonte bastante lucrativa é a extração ilegal de minerais e pedras preciosas, recurso abundante e pouco explorado no Afeganistão. Minério de ferro, mármore, cobre, ouro e zinco são as riquezas mais comercializadas, gerando cerca de US$1 bilhão por ano. Dessa forma, ao assumir o controle das áreas de exploração e cobrar impostos em todas as etapas do processo, o Talibã recebe mais de US$10 milhões anuais do setor.
Percebe-se, portanto, que praticamente todos os setores da economia afegã são tributados pelo sistema de tarifas talibãs, o que lhes permite uma arrecadação bastante expressiva e crescente. Ainda assim, conforme as informações da OTAN, os terroristas buscam aumentar seu patrimônio a fim de alcançar uma independência financeira que lhes permita realizar seus objetivos revolucionários sem o apoio de governos ou de patrocinadores externos.
Tal força e influência econômica apresenta um significativo contraste com o governo civil afegão, o qual é tido como impotente, corrupto e dividido, além de dependente de forças estrangeiras não somente no âmbito financeiro, mas também, no humanitário, ao contar com mais de 55% da população precisando de assistência. Essa discrepante dependência fica evidente ao observar a rapidez com que as forças extremistas tomaram o poder após a retirada dos americanos, sem que as tropas oficiais sequer apresentassem uma resistência significativa.
Poder pelo terror
Outro ponto relevante que fortalece a permanência do Talibã no poder é a implementação de uma visão religiosa que influencia o campo social da população afegã. Assim, por meio da coerção, da doutrina ideológica e da manipulação comercial, os terroristas têm sua autoridade consolidada.
Logo após a instalação do regime extremista, uma versão radical da Sharia foi implementada, utilizando a religião como justificativa para grande parte das ações, mesmo as que feriam os direitos humanos básicos. Nesse modelo de administração, os homens, por exemplo, foram obrigados a deixarem a barba crescer com um comprimento mínimo e proibidos de usar gravatas por serem consideradas um símbolo cristão.
Contudo, o grupo mais afetado pelas restrições de liberdade da sociedade foram as mulheres afegãs, impedidas de sair de casa sem o corpo totalmente coberto por uma burca⁷, viajar sem um parente do sexo masculino e, até mesmo, de frequentar escolas, universidades, academias e parques. Nesse contexto, ao passo que o Afeganistão pune apenas metade dos crimes contra mulheres, 80% das pessoas que cometem suicídio no país são do sexo feminino, enquanto, no resto do mundo, a taxa masculina é o dobro da feminina.
Sob essa ótica, considera-se que, em 2017, das 1.800 pessoas que tentaram tirar a própria vida no país, 1.400 eram mulheres. Nesse sentido, a discrepância foi acentuada com o governo talibã, quando a média chegou a uma mulher cometendo suicídio por dia em 2023.
Ainda sobre a influência local exercida fortemente pelo radicalismo implementado, a autoridade do Talibã é muito pautada no medo imposto à população. Em seu sistema de penas, o governo anunciou oficialmente a existência de punições públicas e a Suprema Corte declarou pelo menos 50 ocorrências envolvendo quase 350 pessoas. Dentre essas, algumas foram condenadas à prisão e todas foram açoitadas, incluindo as mais de 50 mulheres tidas como culpadas.
Embora a ONU tenha feito pedidos juntamente com diversos países para que o Talibã respeitasse os direitos humanos, não há sinal de mudança nos comportamentos da organização. Nesse sentido, as declarações oficiais afirmam que a punição pública dos infratores é uma lição para o restante da população, o que, de acordo com o governo afegão, previne a quantidade de crimes.
O futuro do Afeganistão
Depois de duas décadas de esforços ocidentais para combater os grupos terroristas, o mundo presenciou o fortalecimento do Talibã e sua ascensão ao poder, comprovando a pouca efetividade das medidas dos EUA. Diante de um contexto de aplicação de regras que excluem gerações de mulheres afegãs da vida pública e silencia seus protestos com punições violentas, resta a dúvida: será que ainda é possível manter as esperanças de que haja uma solução pacífica em prol da garantia dos direitos humanos?
Glossário:
Mujahidin: Forças rebeldes que, financiadas pelos EUA, receberam recursos, material bélico e treinamento para lutar contra a ocupação da União Soviética e a implementação de um regime socialista no Afeganistão.
Sharia: Conjunto de leis islâmicas derivadas das orientações do Corão, livro sagrado do islã.
Al-Qaeda: Rede terrorista internacional que tinha como principais objetivos barrar a influência ocidental em países muçulmanos e substituir seus governos por regimes fundamentalistas.
OTAN: Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança formada por 30 países que tem como objetivo garantir a segurança de seus países-membros seguindo um princípio de defesa mútua.
Países do Golfo: Área costeira no Oriente Médio formada por Irã, Omã, Emirados Árabes Unidos, Catar, Arábia Saudita, Kuwait e Iraque, conhecida por ser uma das regiões mais ricas do planeta devido à produção de petróleo.
Ópio: Substância produzida a partir da papoula que serve de base para a fabricação da heroína.
Burca: Vestimenta feminina tradicional islâmica que cobre da cabeça aos pés, deixando somente os olhos aparentes.
referências:
“A Guerra No Afeganistão Explicada Em 10 Pontos.” BBC News Brasil, 8 July 2021, www.bbc.com/portuguese/internacional-57768118. Acesso em: 8 Set. 2023.
“Afeganistão Pune Apenas Metade de Crimes Contra Mulheres E ONU Pede Ação | ONU News.” News.un.org, 7 Dec. 2020, https://news.un.org/pt/story/2020/12/1735322. Acesso em: 4 Set. 2023.
“Afeganistão: O Que é O Talebã?” BBC News Brasil, 15 Aug. 2021, www.bbc.com/portuguese/internacional-58225850. Acesso em: 4 Set. 2023.
Azami, Dawood. “Afeganistão: Como O Talebã Se Financia?” BBC News Brasil, 28 Aug. 2021, www.bbc.com/portuguese/internacional-58369212#:~:text=Segundo%2C%20o%20Taleb%C3%A3%20parece%20ter%20conseguido%20milh%C3%B5es%20de. Acesso em: 4 Set. 2023.
BBC. ““Choravam E Gritavam”: Como Talibã Usa Estádios de Futebol Para Exibir Sessões de Chibatadas E Execuções.” G1, 14 Aug. 2023, http://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/08/14/choravam-e-gritavam-como-taliba-usa-estadios-de-futebol-para-exibir-sessoes-de-chibatadas-e-execucoes.ghtml. Acesso em: 4 Set. 2023.
Conteúdo, Estadão. “Homens Representam 76% Dos Suicidas Do Brasil, Revela Relatório Da OMS.” Gazeta Do Povo, 11 Set. 2019, www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/saude-e-bem-estar/homens-representam-76-dos-suicidas-do-brasil-revela-relatorio-da-oms/. Acesso em: 8 Set. 2023.
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