Ao longo do tempo, ir ao cinema se tornou algo cultural ao redor do mundo. Indo além do processo artístico, essa modalidade se tornou um veículo para reunir famílias, discussões, críticas profundas e até mesmo interferir em grandes organizações. Nesse âmbito, revelam-se fatores que sustentam e alimentam a grandiosidade da indústria cinematográfica, dentre eles, o Oscar, que ocupa uma posição de muito destaque, exercendo um papel influente ao consagrar diferentes formatos de obras audiovisuais. Nesse sentido, com o passar dos anos, a premiação vem sendo capaz de orquestrar de maneira ideológica e financeira esse mercado tão relevante. Dessa forma, é pertinente questionar: como esse evento efetivamente consegue manipular o setor?
Os primórdios
Com o grande impacto da Primeira Guerra Mundial, o protagonismo do cinema foi deslocado da Europa, berço da sétima arte1 e a maior produtora até então, para os Estados Unidos. Nessa ótica, com a intenção de tornar a Califórnia um centro de produção e um eixo econômico, em 1927, Louis Burt Meyer, fundador dos estúdios Metro-Goldwyn-Meyer, corporação muito relevante e independente até a aquisição pela Amazon em 2021, fundou a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em Los Angeles,, como o órgão que regularia o funcionamento e critérios avaliativos de premiações audiovisuais. Entretanto, o seu verdadeiro objetivo era evitar a criação de sindicatos, considerando o poder inerente desse tipo de associação de enfraquecer o domínio da classe burguesa. De acordo com o próprio Meyer, ao incitar a disputa entre artistas, as demandas dos altos escalões do mercado seriam mais facilmente seguidas. Apesar dessa estratégia principal ter falhado, com o surgimento de organizações sindicais na mesma década, o evento veio a se concretizar, e, gradativamente, tomar proporções muito imponentes.
Nos anos iniciais, a premiação foi marcada por uma sequência de ajustes, acompanhados de um crescimento exponencial de sua reputação. Desde sua segunda edição, é sintonizada via rádio local e, posteriormente, em 1953, o Academy Awards também passou a ser televisionado nos Estados Unidos e no Canadá. Dezesseis anos depois, a noite já era transmitida em mais de 200 países, consolidando-se como a maior cerimônia do entretenimento mundial. Além disso, ela sempre teve o posto de maior audiência dentre demais prêmios norte-americanos como o Emmy, Grammy e Tony2, alcançando recordes de quase sessenta milhões de telespectadores simultâneos. Tendo se popularizado pelo mundo, a origem do nome Oscar é imprecisa, entretanto, o que se sabe ao certo é que o apelido começou a ser usado na imprensa por volta de 1934, a partir do colunista Sidney Skolsky.
O impacto
A construção da influência da premiação se sustenta a partir de como as empresas se submetem à autoridade do Oscar como um todo. Além de ser uma grande vitrine, o evento movimenta a economia de diversas formas, seja através da geração de milhares de empregos nos sets, ou através de exibições televisivas do próprio dia do espetáculo, com a famosa cobertura do tapete vermelho e uma festa para mais de três mil convidados no Dolby Theatre.
Entretanto, como um agravante importante que a Academia foi construindo, tem-se um preconceito com filmes estrangeiros. Através de termos operacionais do prêmio como categorias específicas para filmes estrangeiros e regras de exibição, foi arrematando-se um mecanismo quase que inteiro voltado para o privilégio de obras locais. A partir dessa construção, posteriormente, esse protecionismo norte americano foi se espalhando ao redor do mundo, fazendo com que países como o Brasil também passassem a enxergar filmes de língua não inglesa atrelados ao rótulo do estrangeirismo. Dessa maneira, gradativamente, o objetivo de americanizar essa vertente cultural foi se construindo muito perto do planejado, tornando um passado onde a Europa dominava esse mercado quase que remoto.
No passo da transformação das relações entre países e povos além dos dominantes alarma-se o caso revolucionário de Parasita que, em 2019, se tornou o primeiro vencedor de outro idioma na categoria mais aclamada da noite: o Oscar de Melhor Filme. A vitória do filme coreano despertou um engajamento ainda maior sobre tópicos de inclusão e abrangência da indústria. Um exemplo claro dessas inovações em réplica ao fato, em 2020, foi a aprovação de um novo pré-requisito que passa a valer a partir da edição de 2024, determinando o cumprimento mínimo de dois dos quatro chamados “padrões de inclusão”:
Padrão A
Estabelece que pelo menos um dos atores principais ou 30% dos secundários sejam do grupo: asiáticos, latino/hispânicos, negros, nativo-americanos, norte-africanos e nativo havaianos, ou que a narrativa seja centrada nesses.
Padrão B
Impõe que pelo menos dois membros da liderança criativa e chefes de departamento, como diretores, editores, produtores, figurinistas, maquiadores e cenógrafos, sejam do grupo sub-representado ou minimamente seis membros da equipe de projeto ou 30% da equipe técnica inteira.
Padrão C
Tange ao acesso à indústria e à criação de oportunidades, determinando que o produtor ou distribuidor do filme deve financiar aprendizado ou estágio remunerado para as pessoas pertencentes ao grupo.
Padrão D
Aborda o desenvolvimento com o público, pactuando que o estúdio tenha executivos sênior de grupos pouco representados em suas equipes de marketing, publicidade e distribuição.
O mecanismo
Partindo para o funcionamento da premiação, não é qualquer obra que se vê apta a concorrer à estatueta. Como alguns pré-requisitos para a indicação têm-se: o mínimo de quarenta minutos de duração, resoluções e enquadramentos adequados a uma gama aceita pelos executivos da academia e a necessidade de exibição paga por pelo menos sete dias em qualquer cinema de Los Angeles, um dos fatores que alimenta a predominância de filmes estadunidenses nas indicações. Entretanto, indo além de uma primeira nomeação, estudiosos do mercado puderam perceber características técnicas reincidentes em vencedores, passando a produzir filmes seguindo esses esqueletos. Podem-se listar alguns moldes reincidentes e longas3 correspondentes como:
Dramas históricos - Dunkirk; O Resgate do Soldado Ryan; Nada de Novo no Front
Cinebiografias - Lincoln; A Dama de Ferro; Bohemian Rhapsody
Romances imersivos - La La Land; Gigi; Núpcias de Escândalo
Obras que celebram a própria cinematografia - The Fabelmans; Cine Paradiso; Era uma vez … Em Hollywood
A partir desses fatores, foi criada uma padronização no mercado, com uma busca intensificada pelo renome e aparição no evento. Como principal caso, podem-se listar os chamados “Oscar Bait”, que se referem a obras que têm um marketing completamente impulsionado para a competição. Basicamente, significa voltar toda a produção para os formatos que têm maior frequência em indicações, além de, principalmente, apresentar gastos excessivos relacionados à divulgação, seja para engrandecimento próprio ou para deteriorar concorrentes.
Essa prática se popularizou em 1978, com o filme “O Franco Atirador” , que, através dessa estratégia, conquistou nove prêmios, incluindo os de Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Ator. Diante disso, o ocorrido deu origem a um caso mais complexo que é o da produtora Miramax da Harvey Weinstein. A empresa utilizava um orçamento muito acima dos demais em marketing, além de recursos predatórios e antiéticos na corrida pelas estatuetas, que culminou até mesmo na prisão do CEO. Um exemplo notório deu-se quando a empresa encomendou matérias negativas sobre “O Resgate do Soldado Ryan”, o principal concorrente de “Shakespeare Apaixonado", a aposta do produtor. Trazendo para o contexto nacional, um grande reflexo desses atos foi a derrota da atriz brasileira Fernanda Montenegro (“Central do Brasil") para Gwyneth Paltrow (“Shakespeare Apaixonado”) na categoria de Melhor Atriz.
Outra ocorrência comum é o arremate de obras independentes, que fazem sucesso em eventos menores e mais técnicos do cinema, como festivais europeus que ignoram a nacionalidade e valorizam o aspecto artístico e polifônico4 por parte de produtoras maiores. Nessa linha, tem-se o exemplo de “Coda”, filme vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2022, o qual, no ano anterior, no Festival de Sundance, em Utah, teve seus direitos adquiridos, por 25 milhões de dólares, pela Apple Studios, produtora da empresa de celulares que vem construindo carreira no cinema.
Ainda em destaque tem-se a mobilização das próprias plataformas de streaming em projetar formatos e produções de autoria própria, buscando usufruir dos ganhos já datados. Dessa maneira, um exemplo que faceta muito bem essa tese é da produção do filme “Maestro”, pela Netflix, abusando de profissionais frequentes na Academia, como os diretores Steven Spielberg e Martin Scorsese, que possuem dois e um prêmios de Melhor Diretor, respectivamente, além do ator Bradley Cooper, com nove indicações no total na categoria que contempla sua área. Além disso, a equipe operacional da obra ainda propôs à Academia a criação de alguma estatueta que premiasse a obra com “mais esforço” de cada edição, revelando uma tentativa quase que esgotada de adquirir os benefícios de um troféu na noite.
Os efeitos
Evidentemente, essa busca pelos troféus transparecem intenções muito além do campo do prestígio, mas de um viés financeiro muito poderoso. Destrinchando essa esfera, é possível verificar:
1- Aumento do prestígio da empresa:
Após uma indicação ou vitória, a visibilidade da produtora aumenta significativamente. Isso pode resultar em mais atenção da mídia, aumento do interesse do público e potencialmente mais oportunidades de negócios, como financiamento para futuros projetos e facilidade de patrocínios e conteúdo promocional para marcas. Consequentemente, há um impacto na receita e um melhor posicionamento da companhia no mercado, como é o caso da A24, produtora que vem ganhando diversas estatuetas nos últimos anos, como o Oscar de Melhor Filme para “Moonlight” em 2017 e “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” em 2022, gradativamente obtendo maior relevância.
2 - Crescimento de bilheteria:
Considerando um maior interesse do público, são notórios os maiores fluxos de pagantes nas salas de cinema em filmes que ainda estão em cartaz quando são anunciados e/ou premiados. Um relevante caso é o do filme Green Book, da Universal Pictures, que teve uma linearidade de bilheteria completamente afetada pelo processo da premiação.
3 - Aumento da expectativa sobre as entregas de cada produtora:
Como efeito negativo dessa exposição, tem-se o natural processo supressivo sobre a qualidade das entregas futuras de determinado diretor ou produtora, fazendo com que ocasionais deslizes sejam mais severos do que se tivessem ocorrido em companias de menos renome.
O futuro
A relação entre diferentes vertentes criou uma dinâmica intrínseca entre a indústria cinematográfica e a premiação. Passeando por motivações de diferentes correntes, o contexto criado segue estabelecendo cada vez mais parâmetros que possibilitam àquelas obras listadas colher frutos das mais diversas naturezas.
A projeção que desenha o futuro do evento é marcada por uma crescente regulamentação das práticas competitivas, além de um processo que visa tornar esse mercado cada vez mais inclusivo. Nessa linha, listam-se as cláusulas de inclusão para a participação da cerimônia com um reflexo financeiro que, considerando a corrida das grandes empresas ao redor do mundo para participar do Oscar, geram uma maior empregabilidade desses grupos, além de um gradativo equilíbrio socioeconômico atualmente disruptivo, oriundo de sequelas predatórias da antropologia, destacando-se a exclusão de povos. Dessa forma, observações futuras devem vir ainda marcadas por uma máquina de receita sempre crescente, mas representando cada vez mais classes ofuscadas e culturas menos representadas nas telas.
Além disso, fenômenos como as sequelas da pandemia e o constante crescimento das plataformas de streaming desenham um caráter adaptativo nos executivos responsáveis pela Academia, que gradativamente procuram dialogar com as novas redes e tecnologias de distribuição de filmes, incluindo eles nas indicações e facilitando a sua exibição necessária nos cinemas da Califórnia.
Arrematando-se isso, torna-se possível enxergar o desempenho de um papel significativo na indústria, não apenas como uma premiação, mas como um catalisador de discussões e tendências. A influência do Oscar vai além do reconhecimento artístico, afetando diretamente a dinâmica do mercado cinematográfico, influenciando estratégias de produção e distribuição. Dessa forma, tendo enfrentado críticas e controvérsias, como a falta de diversidade em suas indicações, apesar de continuar sendo o evento de maior relevância no entretenimento global, moldando e refletindo as tendências da indústria cinematográfica, leva um rótulo impreciso quanto a permanência dessa magnitude no futuro.
Glossário
1- Sétima arte: Nome como o cinema ficou conhecido de acordo com o manifesto das sete artes de Ricciotto Canudo.
2- Emmy, Grammy, Tony: Prêmios norte-americanos de televisão, música e teatro, respectivamente.
3- Longa: Abreviação de longa-metragem, sinônimo de produções de mais de quarenta minutos, ou seja, filmes.
4- Polifônico: Que abrange diferentes culturas linguísticas.
Referências
THE EDITORS OF ENCYCLOPEDIA BRITANNICA. Academy Award, 19 fev. 2024. (Nota técnica).
Disponível em: <https://www.cena.ufscar.br/wp-content/uploads/2021/02/Cinema-no-Mundo-Ind%C3%BAstria-pol%C3%ADtica-e-mercado-Europa-Vol-V-Alessandra-Meleiro.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2024.
COZINHA, A. Apple compra filme por US$25 milhões durante o Festival de Sundance. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/filmes/apple-compra-coda-25-milhoes-sundance>. Acesso em: 23 fev. 2024.
STERN, M.; YANDOLI, K. L. Oscars’ new rules: Best picture inclusion standards and more. Disponível em: <https://www.rollingstone.com/tv-movies/tv-movie-features/oscars-2024-rules-explained-best-picture-diversity-inclusion-standards-1234962077/>. Acesso em: 23 fev. 2024.
Theatrical revenue of A24 movies in the U.S. and Canada 2013-2022. Disponível em: <https://www.statista.com/statistics/1379291/theatrical-box-office-revenue-gross-a24-us-canada/>. Acesso em: 23 fev. 2024.
Oscars. Disponível em: <https://www.oscars.org/oscars>.
IMDBPRO. Box Office Mojo. Disponível em: <https://www.boxofficemojo.com/>.
ADOROCINEMA. Bilheterias do filme Green Book - O Guia. Disponível em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256661/bilheterias/>. Acesso em: 23 fev. 2024.
Disponível em: <https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/39784/1/PanoramaInd%C3%BAstriaCinematogr%C3%A1fica.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2024.
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