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Conferência de Bretton Woods: a consolidação do dólar como a moeda mais influente do mundo


Dólar dinheiro valor

No início do século XX, o Reino Unido era o grande credor de dívidas internacionais, além de ser detentor do mercado financeiro mais importante. Por isso, a libra esterlina foi a principal moeda no comércio internacional, sendo considerada estável e de confiança para os investidores. Um fato que pode comprovar essa segurança era a sua presença em 80% das reservas monetárias internacionais¹ nessa época. Todavia, sabemos que, atualmente, o dólar cumpre esse mesmo papel de hegemonia na economia global. Logo, cabe o questionamento: como os Estados Unidos conseguiram se sobressair diante de todas as outras moedas, adquirindo a relevância que possui hoje?


A devastação europeia: as Guerras Mundiais


Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a economia global estava estruturada com base no padrão-ouro, o qual funcionava da seguinte forma: o valor da moeda de cada país correspondia às reservas do metal precioso que ele mantinha. Em outras palavras, era como se cada moeda nacional fosse meramente um nome que indicasse um determinado peso em ouro. Assim, o valor de um dólar, por exemplo, equivalia a 1/20 de uma onça de ouro². Além disso, era obrigatório que cada país mantivesse uma parte de seus ativos na forma do minério, o que obrigava a criação de reservas financeiras, gerando uma estabilidade cambial³ dos países. Desse jeito, era garantida certa previsibilidade na macroeconomia, justamente pelo fato do ouro ser um recurso natural finito e, portanto, seu valor não estar sujeito às intervenções econômicas dos governos, além de sua escassez não poder ser compensada por fabricação. Vale lembrar que os países não conseguiam aumentar a oferta de ouro facilmente no mercado, devido à sua escassez, como fazem com as suas moedas, evitando, assim, um processo inflacionário.


Entretanto, essa forma de lastrear entrou em crise, o que se deu como uma das consequências da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Com os conflitos, as potências europeias encontraram alta necessidade de emitir dinheiro a fim de custear os esforços de guerra e, posteriormente, a reconstrução das suas infraestruturas. Dessa forma, com o fim do padrão-ouro, os preços sofreram aumentos devido à redução da força de trabalho e da capacidade produtiva, o que foi proveniente da perda de um contingente populacional considerável nas guerras. Portanto, as reservas dos governos europeus se esgotaram no fim da guerra, haja vista os seus gastos adicionais e de um processo inflacionário que percorria a Europa Ocidental.


Como consequência disso, houve períodos de inflação elevada e instabilidade das moedas europeias. Um exemplo emblemático é o da República de Weimar - atual Alemanha -, que, em outubro de 1923, sofreu o fenômeno da hiperinflação⁴, tendo aumentos de 29.500% ao mês, com preços duplicando a cada 3 ou 4 dias. Nesse cenário, uma fatia de pão, que custava 250 marcos⁵ em janeiro daquele ano, passou a custar 200 bilhões de marcos em novembro.



ouro gráfico valor guerra mundial

A consolidação de um gigante


Por conta da estagnação econômica europeia no pós Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como a nova potência econômica mundial, já que foi desenvolvido um forte sistema financeiro em Nova York. Nesse aspecto, deve-se lembrar que esse sucesso foi garantido, pois os bancos norte-americanos tornaram-se os principais credores das potências europeias. Sendo assim, um exemplo concreto dessa condição foi o Plano Marshall, que consistiu em um aporte considerável de capital - aproximadamente US$154 bilhões em valores corrigidos pela inflação - dos EUA na Europa Ocidental para recompor regiões devastadas pelas guerras. Além disso, outra dinâmica que permitiu a entrada de ouro nos EUA foi a venda de enormes quantidades de armas e suprimentos, o que lhes garantiu uma reserva de ouro significativa. Nesse sentido, estima-se que os norte-americanos acumularam cerca de 70% de todas as reservas de ouro do mundo, já que, por meio do padrão-ouro, tudo era comercializado com base no minério.




Portanto, o dólar americano ganhou muita força, afinal, continuava fixado ao ouro, enquanto o resto do mundo não conseguia garantir estabilidade às suas moedas devido às crises financeiras. Assim, por meio do significativo estoque do minério, o dólar ganhou uma notória importância no comércio global. Logo, a moeda norte-americana já tinha uma grande valorização em relação a outras, porque a volta do padrão-ouro na Europa era impossível, haja vista a escassez do material no continente por conta do seu momento de reconstrução. Desse jeito, houve o estopim para o fim do padrão-ouro, criando dessa forma a necessidade da elaboração de outra forma de organizar o sistema monetário mundial.


O cenário já se apresentava bastante favorável aos estadunidenses, mas a consolidação do gigante americano no sistema financeiro mundial veio com o Acordo de Bretton Woods, o qual foi firmado em New Hampshire (EUA) em 1944. Assinado por 44 países, a motivação principal por trás dele se dava na tentativa de estabilizar a economia mundial, que se encontrava prejudicada devido às guerras cambiais entre nações europeias, após o abandono do padrão-ouro. Desse jeito, elas tentavam artificialmente desvalorizar as suas moedas, com o objetivo de tornar seus produtos mais competitivos no mercado e, consequentemente, alavancar as suas exportações.


Dessa forma, o intuito de Bretton Woods era criar instituições globais, como o FMI - Fundo Monetário Internacional - e o Banco Mundial, para garantir a estabilidade monetária. Com esse objetivo, o acordo definiu que cada país seria obrigado a manter a taxa de câmbio de sua moeda em relação ao dólar, com margem de variação de cerca de 1%. Já a moeda norte-americana estaria ligada ao valor do ouro em uma base fixa.


Nesse cenário, as instituições multilaterais - FMI e Banco Mundial - eram encarregadas de acompanhar esse novo sistema financeiro e garantir liquidez na economia por meio de empréstimos em dólar. "A tendência à concordância em Bretton Woods era muito forte, devido à magnitude das ameaças. Esse filme de cada um por si ninguém queria ver de novo", explica Renato Baumann, diretor do escritório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que faz parte da Organização das Nações Unidas (ONU), outra instituição que nasceu após Bretton Woods.


Esse sistema liberal, que favorecia o mercado e o livre comércio, foi a base para o maior ciclo de crescimento da história do capitalismo nas décadas de 50 e 60, pois os países conseguiram alavancar suas economias por meio de empréstimos e pela estabilidade nas suas moedas devido ao lastro em dólar.


bancos crises dólar valor

Com a sua moeda regendo o mundo e a notória supremacia nos setores industrial, tecnológico e militar, é possível dizer que um país foi o grande vencedor: os Estados Unidos. Esse fato pode ser comprovado se for analisada a porcentagem da participação do dólar nas reservas dos bancos centrais em todo mundo em 1970: 85%.


O fim do acordo, mas não da hegemonia


No entanto, a partir de 1960, os EUA começaram a apresentar um problema: a necessidade de se ter um alto estoque de ouro. Nessa época, o governo norte-americano estava apresentando altos déficits na sua economia, os quais eram pagos por meio do minério de ferro. Isso se dava, especialmente, devido a políticas de gastos elevados dos governos Eisenhower, Kennedy e Johnson que estavam injetando capital nos mercados nacionais, uma vez que, em 1960, as economias europeias já tinha se recuperado das crises anteriores e já estavam mais independentes financeiramente do capital norte-americano, sem necessitarem de mais de empréstimos.


Nesse sentido, por volta de 1968, a tentativa de defender o dólar a um preço fixo em relação à onça se tornava cada vez mais insustentável, afinal, a quantidade de ouro no tesouro americano estava volátil devido aos gastos governamentais. Sendo assim, o forte fluxo de saída de ouro dos Estados Unidos se acelerou, graças a aportes financeiros constantes na economia americana por parte do governo. Assim, os gastos desequilibrados do governo Lyndon Johnson transformaram a escassez de dólares das décadas de 40 e 50 em excesso na década seguinte, o que ficou conhecido como Dólar Glut⁶, ou seja, o governo se via na necessidade de gerar mais capital, porém não tinha o ouro o suficiente.


A combinação de gastos excessivos do governo Johnson com o programa Great Society⁷, gastos com a guerra do Vietnã, o Dólar Glut, balanço de pagamentos negativos e uma inflação monetária programada pelo Federal Reserve levaram à supervalorização do dólar, acelerada pela queda fortemente abrupta das reservas americanas de ouro.


Com a piora do Dólar Glut, a partir de emissões cada vez mais constantes de moeda pelos EUA para cobrir seus gastos, houve a queda das reservas de ouro de 55% para 22%, além da presença inflacionária. Portanto, essa conjuntura provocou descrença aos detentores de dólares globais de que os EUA fariam em algum momento ajustes impopulares necessários para reverter tais problemas associados à inflação da moeda americana.


Nesse sentido, em resposta a toda essa conjuntura, o governo de Nixon, em 1971, emitiu uma ordem judicial impondo o fim da conversão de preço entre o dólar e o ouro, consolidando, dessa maneira, a ruptura com o acordo de Bretton Woods. A partir disso, o preço da moeda norte-americana seria determinado pela livre oferta e demanda desse ativo no mercado, o que ficou conhecido como padrão Fiat Money. Dessa forma, membros do FMI estavam então livres para escolher qualquer forma de acordo de câmbio³ que desejassem (exceto o padrão-ouro), permitindo que a moeda flutuasse livremente. Assim, as moedas internacionais poderiam ter lastro em outra moeda ou uma cesta de moedas; adotar a moeda de outro país; participar de um bloco monetário ou fazer parte de uma união monetária.


A perpetuação do monopólio


Embora o padrão ouro-dólar tivesse chegado ao fim, a Conferência de Bretton Woods impulsionou a dominação da moeda estadunidense no comércio mundial, nos investimentos, nas dívidas dos países, ou seja, em praticamente todos os campos econômicos mundiais. Isso se dá pelo fato de a economia norte-americana já ter sido consolidada como a maior do planeta - apresentando características de segurança e transparência aos investidores -, o que garante uma enorme oferta do dólar no mercado, visto que o PIB dos Estados Unidos é o maior do mundo. Além disso, esse cenário garante aos EUA uma enorme força geopolítica, afinal, o país pode promover sanções econômicas a outros países, proibindo-os de utilizar o dólar, como vem acontecendo atualmente no contexto da guerra entre a Rússia e a Ucrânia.


Ameaça à ordem mundial?


Tendo em vista todas as vantagens garantidas aos EUA por conta da internalização da sua moeda, é normal que outras potências mundiais tentem reinventar suas políticas para também receberem privilégios. Esse é justamente o caso da China, que, após anos de preparação, começou a lançar um ambicioso teste de uma versão digital do Yuan no início de 2020. Atualmente, existem pilotos em quatro cidades chinesas, onde já foram realizadas transações que totalizam mais de 2 bilhões de yuans (US $300 milhões). Nesse sentido, os reguladores chineses sugeriram que a adoção generalizada de um Yuan digital poderia ajudá-los a realizar um plano muito mais grandioso: quebrar o monopólio do dólar americano e aumentar a influência do Yuan no cenário internacional.


Além de tentar tornar a sua moeda mais competitiva com o dólar no cenário atual, a China também busca restringir o câmbio da moeda norte-americana. Algo que é comum de se ver no mercado é a China injetar dólares, provenientes das suas reservas monetárias, com o intuito de aumentar a oferta desse ativo e, consequentemente, desvalorizá-lo.


Além da China, outros países estão cada vez mais buscando ser menos dependentes do dólar. Um caso recente foi o da Rússia, no contexto da sua guerra com a Ucrânia. Com o objetivo de se esquivar das sanções financeiras impostas pelos EUA, o Comitê de Energia Russo afirmou que está pensando sobre a possibilidade de comercializar o seu petróleo em Bitcoins, retirando o dólar do comércio de petróleo de um dos maiores produtores mundiais.


Logo, cabe o questionamento: será que a hegemonia norte-americana, consolidada a partir do acordo de Bretton Woods, será desestabilizada por essas medidas anti-dólar de diversos países?


Glossário:


1 - Reservas monetárias mundiais - são ativos que os países possuem em moeda estrangeira. No caso do Brasil, essa moeda é, majoritariamente, o dólar. Essas reservas funcionam como uma espécie de seguro para o país garantir o cumprimento das suas obrigações no exterior, como empréstimos com outros países, por exemplo. Além disso, também auxiliam na estabilidade diante de choques de natureza externa, como crises cambiais e de interrupções nos fluxos de capital para o país.

2 - Onça de ouro - Unidade de peso do sistema troy, utilizada na pesagem de metais preciosos, equivale a 31,10349 gramas.

3 - Câmbio - O câmbio é uma operação financeira caracterizada pela troca da moeda de um país pela moeda de um outro. É um elemento do sistema monetário internacional, com o objetivo de facilitar as transações entre paises.

4 - Hiperinflação - Conceito econômico derivado da inflação, que nada mais é que uma alta generalizada dos preços de modo geral. Para alguns economistas, inflação acima de 50% ao ano já é considerada hiperinflação e seus efeitos são desastrosos sobre todas as classes sociais.

5 - Marco - Uma das moedas utilizadas na República de Weimar.

6 - Dólar Glut - Excesso de dólar na economia americana.

7 - Programa Great Society - A Grande Sociedade foi um conjunto de programas domésticos nos Estados Unidos lançados pelo presidente democrata Lyndon B. Johnson em 1964-1965. Nesse período, foram lançados novos grandes projetos de gastos que abordavam educação, assistência médica, problemas urbanos, pobreza rural e transporte. Os planejamentos e suas iniciativas foram posteriormente promovidos por ele e outros democratas no Congresso na década de 1960 e nos anos seguintes. A Grande Sociedade em escopo e abrangência assemelhava-se à agenda doméstica do New Deal de Franklin D. Roosevelt.


Referências:


Barreto, Pedro Henrique. “Quarenta e quatro países, inclusive o Brasil, participaram da reunião em New Hampshire (EUA): o mundo vivia a ressaca da crise de 1929,seguida da Segunda Guerra Mundial”. Disponível em: < https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=2247:catid=28&Itemid=23 >. Acesso em: 28/03/2022.


Infinity. “Inflação e o fim do acordo de Bretton Woods”. Disponível em: < https://infinityasset.com.br/inflacao-e-o-fim-do-acordo-de-bretton-woods/ >. Acesso em: 25/03/2022.


He, Laura. “China experimenta moeda digital para tirar hegemonia do dólae. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/business/a-china-experimenta-usar-moeda-digital-para-tirar-hegemonia-do-dolar/?amp >. Acesso em: 28/03/2022.


Razão Econômica. “Como o dólar se tornou a moeda mais importante do mundo?”. Disponível em: < https://youtu.be/A-i2YvGED9E >. Acesso em 28/03/2022.


Uchoa, Pablo. “Como se resolveram os 5 maiores episódios de hiperinflação da história.” Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-45358463.amp >. Acesso em: 25/03/2022.

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