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Desumanidade: a Venezuela pede socorro.

Atualizado: 13 de abr. de 2021

Cidade humilde na Vezeuela
Venezuela

Desabastecimento dos supermercados. Violência urbana em níveis jamais observados anteriormente. Crescimento da onda migratória para os países vizinhos. Instabilidade geopolítica internacional. Essa é a situação vivenciada pela população venezuelana que, desde o início da sua pior recessão econômica, passa a (sobre)viver em um contexto de guerrilha urbana fomentada pelos abusos do seu governo de características ditatoriais. Entretanto, como o país mais rico da América do Sul na década de 90 e um dos maiores produtores de petróleo do mundo, recurso vital para a industrialização e desenvolvimento humano, chegou a esse ponto? Para responder a essa questão, devemos retornar ao tempo em que todo esse cenário não passava de uma mera distopia.


A teoria de tudo: o bem e o mal

Embora muitos acreditem que o problema se iniciou com o governo Chavista, a problemática se iniciava quase um século antes, quando, ao fim da 1° Guerra Mundial, os governos subsequentes optaram por priorizar o desenvolvimento da indústria petrolífera em detrimento de outros avanços na industrialização do país ou até mesmo no setor agrícola. O resultado está exposto nos seguintes dados: 96% das exportações da Venezuela são de petróleo, ou seja, há dependência total desse mercado. Especialistas afirmam que a abundância do chamado ouro preto significa, simultaneamente, o bem e o mal para o país. Tendo isso em mente, torna-se mais fácil entendermos a crise.


Crise da “Venezuela Saudita”

750 bilhões de dólares. Essa quantia foi a receita proveniente das exportações do petróleo entre os anos de 2004 e 2015 - época que engloba o governo de Hugo Chávez e início do mandato de seu braço direito e sucessor Nicolás Maduro. Comparando com a receita brasileira proveniente da venda desse commodity no último ano de 2018 - cerca de 25 bilhões de dólares -, nota-se que tivemos um rendimento bem inferior à média do mandato de Chávez (pouco mais de 60 de bilhões de dólares). Os famosos petrodólares realmente inundaram a Venezuela de capital externo. O céu era o limite.


Entretanto, em uma demonstração de despreparo técnico-administrativo e falta de know-how na estratégia de governar o país, o investimento dessa quantia foi, basicamente, para o financiamento de programas sociais estatais e a importação de tudo que era consumido no país, como commodities e medicamentos. Mesmo após essa inundação de capital, não houve investimentos que se adequassem ao porte e necessidade da própria indústria petrolífera, muito menos nos outros setores fundamentais para um país: indústria e agricultura.


Então, em meados de 2014, uma conjuntura de fatores econômicos e políticos começaram a trazer à tona os efeitos dessa extrema dependência do petróleo. Outrora apelidada como “Venezuela Saudita”, em alusão a outro país muito forte nesse recurso natural, a Arábia Saudita, nosso vizinho sul-americano sofreu com a queda do preço do barril do petróleo. Algumas das principais razões desse panorama foram: o aumento da oferta mundial desse recurso com a sua superprodução pelos membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a crise diplomática envolvendo Irã e Arábia Saudita e o crescimento dos Estados Unidos no setor de óleo e gás, em decorrência do desenvolvimento do método fracking na produção do gás de xisto. A efeito de comparação, o barril alcançou um pico de 138 dólares, em 2008. Por outro lado, na crise, o preço médio tornou-se cerca de 80 dólares.



Além da perda da margem de lucro, também pode-se destacar a diminuição no volume de exportação. Nessa mesma época, a produção diária de barris caiu de 3 milhões para 1,5 milhão, de acordo com a OPEP. Isso foi impulsionado pela má gestão e corrupção da Petróleos de Venezuela (PDVSA), estatal que, graças à atuação e força do Estado, monopoliza a responsabilidade por gerir e explorar esse recurso venezuelano. Essa quantia representa o pior nível de produção do país nos últimos 33 anos.


Além de não investir em setores fundamentais para o desenvolvimento do país, o governo Chavista passou a criar medidas que limitaram cada vez mais o capital privado: nacionalizou diversas indústrias, expropriou dezenas de empresas privadas e tentou controlar de maneira artificial a inflação ao adotar uma política de controle de preços. Isso tudo sustentado e apoiado por uma população insatisfeita com a grande desigualdade socioeconômica e que via no governo populista de Chávez a imagem de um salvador para tal cenário social.


Porém, após todas essas decisões populistas, o que efetivamente ocorreu com o povo venezuelano?


O desserviço da intervenção estatal descontrolada

Enquanto uma minoria de apoiadores do governo obtinham vantagens, os benefícios para o resto da população, como o maior salário mínimo da América Latina e o pioneirismo na extinção do analfabetismo, foram se extinguindo à medida que a receita petrolífera não conseguia mais subsidiar os programas Chavistas, continuados por seu sucessor, Nicolás Maduro. A estratégia de controlar a inflação, por meio dos controles dos preços teve efeito contrário, causando uma hiperinflação a qual, de acordo com o FMI, em 2018 foi de 1.000.000% (1 milhão). Dados oficiais mostram que em 2014, “somente” 47% do país vivia na pobreza. O número atual beira os 87% da população.



Agora, imagine a seguinte situação: você, cidadão venezuelano, deseja comprar um produto de baixíssimo valor agregado. Algo como um café, por exemplo. Com esse contexto de hiperinflação, há uma forte tendência de corte dos gastos discricionários, já que o poder de compra da população não consegue se manter estável frente ao descompasso entre o aumento dos preços das mercadorias, como o café, e o dos salários. Dessa forma, você não comprará seu café, uma vez que, com uma grande incerteza sobre o valor de seu salário nos próximos meses, você priorizará itens mais urgentes.


Isso também atrapalha muito as indústrias e comerciantes, ainda mais quando observa-se a solução do Estado venezuelano: abaixar os preços dos produtos artificialmente, sendo que o custo de produção já era mais alto do que o normal, uma vez que a maioria dos insumos são importados e o bolívar estava se desvalorizando rapidamente. Então, o preço de venda dos produtos, muitas vezes, torna-se menor que o seu custo de fabricação, desestimulando a produção nacional e originando uma escassez de produtos básicos e fome. Como um país extremamente dependente das importações para os itens de uma cesta básica consegue abastecer seus mercados se a economia não gira? Simplesmente não há como. O resultado disso está exposto na própria saúde da população: estima-se que, em média, o cidadão venezuelano tenha perdido 11 quilogramas somente nesse último ano.


Soma-se a essa problemática algumas dezenas de outras violações dos direitos humanos durante a crise: a decadência do sistema público de saúde, aumento da regulação estatal na imprensa e a repressão de manifestações. Diante de todos essas atitudes que ferem o Estado Democrático de Direito, uma parcela da sociedade venezuelana, em consonância com alguns países de forte atuação em sua política externa, como os Estados Unidos, fortalece um movimento de oposição ao governo socialista vigente, a fim de acabar com a anomia no país.


Pode-se destacar o ano de 2014 como o estopim para o início das revoltas contra o governo do sucessor de Chávez. Essas, conhecidas como “La salida”, tinham como principal reivindicação o fim do mandato de Nicolás Maduro. Exercendo todo o poder adquirido durante anos de seu antecessor, os protestos foram reprimidos violentamente e toda a participação externa de alguns países foi duramente criticada.


As manifestações contrárias tornaram-se algo recorrente. Com determinados hiatos, é comum notar que a força policial, corrupção e atitudes antidemocráticas mantinham o controle do país na mão do governo vigente. Entretanto, em 2017, o último órgão legislativo que ainda detinha maioria de oposição, a Assembleia Nacional, sofreu com a remoção da legitimidade de seus poderes por parte da Justiça Venezuelana. Após uma pressão popular, Maduro optou por revogar tal decisão. Ao menos, momentaneamente, a Assembleia ainda possui influência.


Mais recentemente, no início de 2019, após Maduro ser eleito em uma das eleições mais controversas da história contemporânea, marcada pela maior abstenção da história do país e pelo não reconhecimento de diversos países ao redor do mundo, surge uma figura até então pouco conhecida no cenário internacional: Juan Guaidó. Presidente da Assembleia, intitula-se presidente interino, sendo reconhecido por diversas outras nações como autoridade máxima do país, inclusive o Brasil.


Atualmente, a situação em nosso vizinho é de extrema tensão, em razão de governos paralelos e enfraquecimento de laços diplomáticos do mandato de esquerda com grandes potências do mundo, como os Estados Unidos. Este, por sua vez, comandado por Donald Trump, já aplicou novas sanções econômicas ao Estado venezuelano e também não descarta uma possível intervenção externa dada a calamidade do país. Somado a isso, o novo cenário político da América do Sul fez o apoio internacional a Maduro diminuir, já que grandes aliados como Cristina Kirchner (ex-presidente argentina), Lula e Dilma saíram do panorama geopolítico da região. Enquanto a situação não se encaminha para um fim, a população continua a sentir seus efeitos negativos.


Assim, intensificou-se uma forte onda migratória de saída desse país, comparada muitas vezes com a crise dos refugiados na Europa, devido a sua escala internacional. Dados recentes estimam que mais de 3,5 milhões de pessoas tenham deixado a Venezuela desde 2015, o que representa cerca de 15% da população total. Nesse sentido, é notório que o panorama atual de instabilidade social, econômico e civil afeta não somente o próprio país, como também seus vizinhos sul-americanos.


Quais são os efeitos da crise para os países vizinhos?

É evidente que o Brasil já convive com seus problemas internos: desemprego, corrupção, violência, instabilidade e sobrecarga dos serviços públicos. Porém, tudo isso é agravado pelas questões políticas, econômicas e humanitárias de nosso vizinho.


Do ponto de vista financeiro, é de se esperar que o valor exportado pelo Brasil para a Venezuela tenha diminuído drasticamente, já que esta encontra-se menos disposta e apta a realizar negociações e transações financeiras. No caso, o Brasil não fechava tão poucos negócios com a Venezuela desde 1999. Entretanto, deve-se ressaltar que, de acordo com o professor e economista do Insper, Otto Nogami, a implosão econômica desse parceiro não causa grandes impactos na economia brasileira, já que nossas exportações são amplamente diversificadas entre vários países. Ademais, parte considerável dessa diminuição de exportações também foi motivada pela troca de governo brasileiro ocorrida em 2016 (impeachment do governo Dilma), já que transforma-se a antes bem estabelecida relação entre os dois países em um clima de animosidade e de redução de negociações. No entanto, há ainda de se destacar que alguns setores nacionais sofreram drasticamente com a crise, como o de maquinários e farmacêutico.



Diante dessa crise humanitária, o êxodo de venezuelanos em busca de uma vida mais digna é uma tendência. Com isso, também surge a questão: como o Brasil, um país que não consegue garantir emprego, educação e saúde pública para seu próprio povo, irá conseguir recepcionar esses imigrantes? Isso se aplica principalmente para o estado brasileiro na fronteira com a Venezuela: Roraima. Atualmente, cerca de 8% de sua população é composta por imigrantes venezuelanos, devido ao fluxo desordenado no auge da crise. Essa grande concentração faz com que tanto o governo estadual quanto os habitantes roraimenses exerçam pressão nas autoridades políticas, a fim de que alguma medida seja tomada visando controlar de maneira eficiente nossas fronteiras.



Enquanto Brasília não toma atitudes que possibilitem a inserção desses novos imigrantes na sociedade brasileira, é crescente a onda de ataques violentos, xenofóbicos e repressivos. Soma-se a isso a polarização política interna, ainda mais na época das eleições em 2018, na qual a Venezuela era objeto de discussão entre os principais partidos que disputavam o Palácio do Planalto. Com a vitória do atual presidente da república, Jair Bolsonaro, o Brasil claramente figura como um dos maiores apoiadores do fim do governo de Maduro. Apesar disso, uma intervenção militar, diferentemente dos Estados Unidos, é descartada no atual momento.


Em um futuro próximo, a crise de migração pode ser amenizada com a diminuição desse fluxo, conforme o IBGE estipula. Entretanto, essa tendência em nada comprova que o cenário de crise tende a terminar. Em parte, isso se deve mais a outros países sul-americanos que, em uma medida diplomática e humanitária, estão abrindo suas fronteiras, facilitando a entrada de novos imigrantes, como a Colômbia.


Apesar de ser um país com extensão territorial e população bem inferiores ao nosso, a Colômbia recebe cerca de 10 vezes mais imigrantes do que nós. Neste caso, a razão pela qual existe tanta migração de refugiados vai além da proximidade territorial. O motivo está no relação histórica entre ambos os países: solidariedade e retribuição.


Na década de 80 e 90, a nação colombiana estava no auge da Guerra contra o narcotráfico, responsável por milhares de mortes. Então, a população colombiana fugia do domínio dos cartéis do tráfico de Pablo Escobar e cia para, principalmente, um destino: Venezuela. Nesse sentido, o povo colombiano, juntamente com seu governo, promove uma melhor recepção, já que existe um forte sentimento de gratidão pela ajuda em tempos passados.


É essencial ressaltar, entretanto, que existe um controle na fronteira entre os dois países e a assistência humanitária é feita de maneira planejada. Ademais, a Colômbia está no grupo de países que não reconhecem o governo de Maduro e, por isso, apoiam uma nova conjuntura social, política e civil da Venezuela.


Diante do exposto, fica evidente que a situação no país petrolífero é grave. Mas, nunca antes na história venezuelana, houve tamanha união e organização da oposição e apoio internacional em prol de possíveis mudanças. Talvez, quem sabe, possamos estar próximos do último suspiro de aflição dos habitantes que ainda não abandonaram o país onde nasceram. Talvez, possamos também, nos aproximar do derradeiro momento em que não mais haverá uma fuga em massa do seu país de origem. Isso só o tempo poderá dizer, apesar de um fato ser irrefutável: a Venezuela pede socorro!


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