No século XVII, um botânico trouxe à Holanda tulipas oriundas de Constantinopla. A população local se interessou pela novidade e, em pouco tempo, a planta passou a ser valorizada no país, sendo vista como um símbolo de riqueza e status social. Seu preço aumentava incessantemente, e, com isso, muitas pessoas perceberam que era possível lucrar com o comércio de tulipas, comprando-as e revendendo a um preço mais caro. O incremento em seu valor chegou a até 2000% em um mês. A Holanda começava a viver a “Febre das tulipas”. Como as plantas não florescem o ano todo, foram criados contratos que equivaliam a uma quantidade fixa de tulipas, para que elas pudessem ser comercializadas em qualquer época do ano. Esses contratos passaram a ser vendidos nas principais bolsas de valores da Holanda e também de outros países, como França e Inglaterra. Em seu ápice, o valor de uma única tulipa era suficiente para alimentar, por meses, a tripulação inteira de um navio. No entanto, em 1637, um comprador que havia percebido a discrepância entre o preço em que a tulipa era comercializada e seu preço real se recusou a cumprir um contrato de compra de tulipas que havia firmado. Esse pequeno gesto, aliado à crescente incerteza relativa aos seus preços irreais, foi o gatilho que iniciou uma onda de pânico, e que implicou uma queda brusca do valor de mercado das tulipas, aproximando-o do valor de qualquer outra planta. A primeira bolha da história humana havia estourado.
Provavelmente quando você ouve a palavra “bolha”, não é uma tulipa que vem à sua cabeça. A tulipa da vez é o Bitcoin. Devido ao seu crescimento nos últimos anos, ele tem sido assunto recorrente em notícias e nas redes sociais. Dessa forma, tornam-se comuns os questionamentos sobre sua natureza: afinal, o Bitcoin é mais uma bolha especulativa?
O que é uma bolha?
Em primeiro lugar, para responder à pergunta feita no parágrafo anterior, é necessário entender esse conceito. Bolha especulativa é um fenômeno no qual acontece a supervalorização de um ativo, ou seja, seu preço cresce de modo que o seu valor de mercado se distancia de seu valor intrínseco. Assim, tal supervalorização provoca euforia no mercado, que, por sua vez, retroalimenta o aumento de preço, gerando um ciclo: mais gente vê, no ativo, uma oportunidade de ganhar dinheiro e por isso o compra, fazendo com que seu preço se mantenha crescendo, o que é explicado pela Lei da Oferta e da Procura. Como mais gente quer comprar, seu valor aumenta. Entretanto, existe um motivo para este cenário ser chamado de bolha. Devido à fragilidade da situação em que o ativo se encontra, eventualmente a bolha irá “estourar”, ou seja, por algum motivo haverá uma quebra na expectativa de valorização, fazendo com que seu valor caia de maneira abrupta e desenfreada, como ocorreu na febre das tulipas.
Identificando uma bolha
Podemos dividir a existência de uma bolha — do seu surgimento até o ponto em que estoura — em, basicamente, 4 fases:
Discrição: O ativo é muito pouco conhecido e seu valor cresce de forma modesta. Apenas pessoas que o conhecem profundamente o compram. São os investidores que compõem o “Smart money”, grupo que tem maior acesso às informações e maior compreensão do cenário econômico, em geral.
Consciência: Muitos investidores começam a ter consciência do ativo e de sua possibilidade de valorização. Sua velocidade de crescimento aumenta conforme investidores aderem à novidade, principalmente investidores institucionais, como fundos de investimento. No fim desse período, o ativo começa a ser reconhecido e noticiado pela mídia, dando início à terceira fase.
Modismo: Ampla parcela da população passa a ter conhecimento sobre o ativo e sua valorização. Ele é visto, por muitos, como uma oportunidade única na vida e acredita-se que manterá, a longo prazo, sua tendência de valorização. Isso provoca euforia na população, e cada vez mais há entrantes sem nenhum conhecimento sobre o mercado e atividades financeiras, apenas querendo se aproveitar da oportunidade que veem. Nessa fase, há um período de realização, em que o Smart Money, investidores com mais experiência e pessoas mais cautelosas, em geral, realizam seus lucros ao vender o ativo. Isso provoca uma forte correção, mas, em pouco tempo, a tendência de crescimento é recuperada e se mantém até que se inicie a última fase da bolha.
Decepção: Normalmente essa fase é iniciada por um gatilho. Uma notícia negativa surge ou um tubarão (grande investidor) realiza seu lucro e, quase instantaneamente, o medo e a incerteza, que sempre estiveram presentes no mercado, tornam-se mais fortes e tomam conta de muitos investidores, que rapidamente vendem tudo que têm, iniciando uma onda de negatividade marcada por uma queda abrupta de preços. O “efeito manada” toma conta e todos que compraram o ativo tentam vendê-lo, retroalimentando a queda de preço e levando-o aos patamares iniciais. No fim da quarta fase, às vezes, o valor do ativo se encontra abaixo de seu valor intrínseco, de tão forte que foi a queda. Por causa disso, pode surgir uma boa oportunidade de compra.
Essas 4 etapas compõem um ciclo e, em alguns casos, como em bolhas imobiliárias, é comum que a ela se forme novamente depois de estourar. Na figura abaixo, estão ilustradas as 4 fases de uma bolha genérica.
Normalmente, é difícil avaliar o valor real de um ativo no mercado. Alguns ativos, como pinturas e obras de arte, nem possuem valor intrínseco. Seu valor está, literalmente, nos olhos de quem as vê. Logo, por conta dessa dificuldade, bolhas, em muitos casos, só são identificadas depois que estouram. Observando um gráfico como o da figura acima, é muito fácil afirmar que se trata de uma bolha. Mas também existem formas de tentar identificar bolhas antes que elas estourem. Nesse contexto, no livro Boombustology, o autor, Vikram Mansharamani, afirma que existem 5 perspectivas a partir das quais o ativo pode ser considerado uma bolha. São elas:
Perspectiva microeconômica: Quando um produto aumenta de preço, é comum, devido à Lei da Oferta e da Procura, que a demanda por ele diminua, já que está mais caro e menos acessível. Quando isso não acontece, é um sinal de um possível cenário de bolha.
Perspectiva macroeconômica: A presença de muita alavancagem, termo que denomina o investimento em um ativo a partir de capital obtido com empréstimos, é outro indicador de uma possível bolha. Em um cenário com muita liquidez, tomadas de empréstimos são facilitadas e, com esses empréstimos, investe-se no ativo, caracterizando a alavancagem.
Perspectiva psicológica: Outro indicador de bolha é quando o ativo é visto como algo totalmente diferente e inovador, que vai transformar a sociedade definitivamente.
Perspectiva política: A influência de políticas públicas que ajudam a distorcer o preço do ativo, supervalorizando-o, é outro indicador da possibilidade de ser uma bolha.
Perspectiva epidêmica: Está relacionada à parcela da população que está “infectada”, ou seja, envolvida com certo ativo. Caso seja muito alta, é um forte indicador de uma bolha financeira.
Ao contemplar, conjuntamente, essas 5 perspectivas, é possível analisar com maior precisão a possibilidade de um ativo ser uma bolha. Para verificar a validez dessa teoria desenvolvida em Boombustology, iremos analisá-la sob a ótica da crise do subprime, em 2007.
A bolha de 2007 foi gerada pela especulação do mercado imobiliário nos EUA envolvendo empréstimos hipotecários de alto risco (subprime) a pessoas sem comprovação de renda ou com mau histórico de crédito. A crise surgiu devido à concessão desenfreada de crédito imobiliário (perspectiva macroeconômica) ao mesmo tempo que o Fed, conjunto de bancos centrais americanos, mantinha juros baixos (perspectiva política), em um momento que o mercado imobiliário crescia sem parar (perspectiva microeconômica). Acreditava-se ser uma oportunidade sem precedentes para multiplicar seu dinheiro de forma relativamente simples (perspectiva psicológica). Chegou um momento em que toda sociedade americana investia no setor imobiliário por meio das hipotecas subprime (perspectiva epidêmica). Em decorrência disso, em meados de 2007, houve inadimplência em massa, e, com isso, os bancos passaram a vender os imóveis dos inadimplentes em grande escala. Esse cenário gerou uma queda abrupta dos preços, a falência de diversos bancos e, por fim, a implosão de todo sistema financeiro global. A bolha havia estourado, culminando na crise de 2008, cujos impactos são sentidos em todo o mundo até hoje, 10 anos depois.
Percebe-se que todas as 5 perspectivas que indicam a possibilidade de uma bolha estavam presentes na crise do subprime. Se analisarmos outras bolhas, também é possível encontrar esse padrão. Então, agora, é hora de aplicar as 5 perspectivas sob o prisma do Bitcoin.
Afinal, o Bitcoin é uma bolha?
Na lente da microeconomia, que diz respeito ao aumento desenfreado de preço, o Bitcoin é uma bolha. Mesmo com o aumento do preço, a sua procura não diminuiu, muito pelo contrário, aumentou muito.
Já analisando a perspectiva macroeconômica, ou seja, a presença de alavancagem, o Bitcoin não se enquadra como uma bolha. Essa prática é irrisória em se tratando de Bitcoin e criptomoedas, praticamente não existe. Bancos, em geral, nem fornecem financiamento para a compra desse tipo de ativo.
Quanto ao viés psicológico, o Bitcoin com certeza se encaixa. De fato, é algo visto como revolucionário e sem precedentes.
Na perspectiva política, o que ocorre é o oposto de um cenário de bolha: os governos fortemente desincentivam o uso de Bitcoin e outras criptomoedas devido à ameaça que apresentam em termos monetários e graças à possibilidade de anonimato, portanto, tenta-se coibir seu uso.
Por último, sob a lente da epidemia, o Bitcoin, atualmente (começo de março), possui um valor de mercado de 194 bilhões de dólares. O valor de capitalização da Apple, por exemplo, é 5 vezes maior que isso. O do mercado do ouro, 36 vezes maior. Comparando com o mercado total de ações global, que em 2016 era de 65 trilhões, o Bitcoin corresponde a apenas 0,3% de seu valor. Portanto, mesmo que já haja um grande “hype” em torno do Bitcoin, apenas uma parcela muito pequena da sociedade usa Bitcoins e só uma fatia muito pequena do capital existente está investida na moeda. Mesmo assim, não é correto afirmar que o valor de mercado do Bitcoin é pequeno, visto que supera o PIB de diversos países, como o do Uruguai, de 55 bilhões de dólares. Isso mostra que, mesmo que, hoje, pela perspectiva epidêmica, o Bitcoin não seja uma bolha, é possível que futuramente esse cenário mude.
Das 5 perspectivas, 2 delas enquadraram o Bitcoin como bolha. Isso significa que não é uma bolha? Não. Isso significa que é uma bolha? Também não. Antes de respondermos à pergunta inicial, há mais algumas observações pertinentes.
Se a resposta for “sim”, não significa que um dia o Bitcoin entrará em colapso para sempre. O estouro de uma bolha é uma queda muito grande em seu valor, mas não significa necessariamente o fim ou o fracasso de um ativo. No fim do século passado, surgiu a bolha da internet: o valor de ações de empresas atuantes no mundo digital cresceu abruptamente. A crença de que a internet seria revolucionária e que as empresas ligadas a ela cresceriam muito alimentou essa bolha. No começo de 2000, ela estourou e, consequentemente, muitas empresas faliram. Mesmo assim, a internet se manteve como tecnologia em ascensão e novas empresas na internet surgiram e tiveram sucesso. Fazendo um paralelo com criptomoedas, podemos entender o Bitcoin como uma empresa que cresceu, inflando a bolha e, no futuro, quando a bolha estourar, irá falir também. Mas, depois, outras criptomoedas podem surgir e manter vivo o legado do pioneiro, o Bitcoin.
Por outro lado, se a resposta for “não”, não significa que o valor do Bitcoin está abaixo de seu valor real. É possível, mesmo assim, que hoje ele esteja supervalorizado e uma correção de valor o aguarde. Como qualquer outro ativo, ele vive em ciclos de altas e de baixas. Diversas grandes correções já ocorreram no Bitcoin, chamadas por muitos de “momentos de bolha”, nos quais o seu valor teve quedas de até 80%. No início de 2018, por exemplo, houve mais uma grande correção, que reduziu seu preço em 70%, caindo de quase 20 mil dólares para cerca de 6 mil dólares.
É possível que apenas descubramos que o Bitcoin foi uma bolha depois que estoure, como ocorreu com outras bolhas famosas na história. Mas pode ser, também, que seu poder revolucionário seja tamanho a ponto de justificar seu alto valor. Muito do que envolve o Bitcoin ainda é incerto, desde seu criador, até seu futuro. A resposta para a pergunta inicial não é diferente. Mas, afinal, o Bitcoin é ou não uma bolha? Por ora, a única resposta certa para essa pergunta é “talvez”.
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