A greve dos caminhoneiros, iniciada no dia 20 de maio de 2018, gerou uma movimentação política, econômica e social de proporções inesperadas para a maioria da população. O impacto na bolsa de valores foi expressivo - com 9 dias de paralisação, o índice Bovespa atingiu seu menor patamar este ano, recuando 4,5%, e fechou seu pior mês desde setembro de 2014, início da crise econômica no Brasil. A greve, no entanto, revela uma característica ainda mais alarmante sobre a economia do nosso país: a forte dependência do modal rodoviário para a logística das empresas e, consequentemente, para o abastecimento das cidades.
O movimento começou com alguns caminhoneiros manifestando sua insatisfação com o aumento do preço dos combustíveis. Essa alta foi consequência da nova política de precificação da Petrobras, implementada em meados de julho de 2017, que baseia o valor de venda do petróleo e seus derivados na cotação internacional do barril e no câmbio flutuante (valor de mercado das moedas em função da oferta e da demanda, sem interferência do governo). O objetivo dessa mudança era recuperar o valor de mercado da empresa e seu prestígio no cenário mundial. Com sucesso, alguns meses após a implementação do modelo, o preço das ações da Petrobras quadruplicou, o que indica que a política teve efeito positivo para o valuation da empresa. O que o governo e o então presidente da Petrobras, Pedro Parente, provavelmente não esperavam era que o preço do barril de petróleo fosse atingir, quase 1 ano depois, seu maior preço desde 2014. Somado à alta volatilidade do real em relação ao dólar, o cenário foi de reajustes consecutivos no preço dos combustíveis - no mesmo período o valor do diesel aumentou em 56% nos postos de gasolina. A manifestação tomou proporções nacionais e as principais reivindicações foram a redução de impostos - que compõe 48% do preço final da gasolina - e extinção do pedágio para caminhões com eixo suspenso. Para fazer valer suas exigências, os caminhoneiros fecharam rodovias federais, queimaram pneus e comprometeram diversos setores da economia do país.
Por conta da paralisação, a logística da maioria das empresas que atua em solo nacional ficou extremamente prejudicada. De acordo com dados do G1, o setor de agricultura teve um prejuízo de cerca de R$6,6 bilhões e o comércio de R$3 bilhões. Isso aconteceu, basicamente, porque a greve dos caminhoneiros afetou profundamente o funcionamento da cadeia de suprimentos das empresas, ou seja, comprometeu a eficiência com que as companhias conseguem trazer seus produtos desde os fornecedores até o consumidor final. Assim, as verduras e legumes estragaram ainda nas plantações enquanto as prateleiras do hortifruti foram ficando cada dia mais vazias.
Para entender a fundo o motivo do forte desabastecimento de setores chave da economia do país, é indispensável entender como as empresas coordenam suas cadeias de suprimentos, ou supply chain. O perfeito funcionamento de uma supply chain é dado por diversos fatores, entre eles, uma precisa gestão do fluxo de informações e otimização de processos e relações entre empresas. Os setores de logística são responsáveis por transportar desde matérias primas como petróleo e outras commodities até os distribuidores finais, sejam eles os supermercados, lojas ou postos de gasolina. Para que essas operações rotineiras ocorram de forma eficiente, todas as partes envolvidas devem estar comprometidas com os prazos e as entregas. Mas, mesmo que a Petrobras esteja 100% comprometida em vender seu produto nos termos estabelecidos, é impossível que a mercadoria chegue aos postos de gasolina sem o auxílio dos intermediários encarregados de transportá-la - no Brasil, esse transporte é feito majoritariamente por meio de rodovias.
A malha rodoviária brasileira é responsável por escoar de 60% a 75% de toda produção do país para o seu destino final. Essa proporção é extremamente alta se comparada à de outros países de dimensões continentais, como mostra o gráfico abaixo. Desta maneira, a cadeia de suprimentos fica extremamente dependente do transporte rodoviário e, em momentos de crise, compromete o abastecimento até dos setores mais essenciais para a sociedade. Com apenas alguns dias de greve, muitas empresas se viram obrigadas a paralisar suas operações por completo, uma vez que as transportadoras do país inteiro pararam. Containers ficaram bloqueados em portos, fábricas ficaram sem insumo para produzir suas mercadorias e, no setor de serviços, teve até delivery feito a cavalo para tentar driblar o prejuízo.


Dados: 2013
Fonte: ABDIB/CNT
¹ O gráfico compara a matriz de transporte dos países levando em consideração o transporte tanto de carga quanto de pessoas.
Mas como o país ficou tão dependente de apenas um modal de transporte? A história do rodoviarismo no Brasil se inicia no século XX e tem seu auge no governo de Juscelino Kubitschek. Com o objetivo de construir uma rede de transportes eficiente, JK apostou no modal rodoviário, por sua fácil concepção e versatilidade. A implementação das rodovias incentivou a vinda de empresas automobilísticas multinacionais para o território brasileiro e, com elas, o surgimento de lojas de autopeças, mecânicas e todo um mercado auxiliar consagrou o rodoviarismo como o modal predominante no Brasil. Os benefícios desse modelo, no entanto, não são tão claros para os produtores e consumidores. Apesar dos baixos custos de implantação, apenas 11,2% de todas as rodovias brasileiras são pavimentadas, de acordo com dados da revista CNT, 2013. As péssimas condições de conservação acarretam em acidentes e danos nas estradas - um custo para a empresa que precisa arcar com as perdas de mercadoria e para o governo, que precisa realizar a manutenção do trecho. Aliados a isso, estão o alto custo de frete, falta de segurança nas estradas, baixa capacidade de transporte (um caminhão carrega muito menos mercadoria que um trem, por exemplo) entre outros motivos que fazem com que a falta de integração entre modais no país seja extremamente prejudicial para o fluxo de cargas e pessoas. Em um cenário de paralisação, o impacto no transporte é muito maior do que seria se o Brasil tivesse uma matriz de transporte mais heterogênea.
A greve, então, atingiu um ponto central do funcionamento de toda a indústria e economia do país. Os efeitos, no entanto, não seriam sentidos tão rapidamente, não fosse uma característica agravante no atual modelo de gestão de logística. O desenvolvimento dos meios de comunicação e controle de toda a linha de produção trouxeram grandes transformações na maneira como as cadeias de suprimentos se organizam e, com elas, manter um estoque duradouro tornou-se um custo desnecessário. Cada vez mais, a indústria trabalha com um modelo de logística on demand, o que, na prática, significa que diariamente chegam mais produtos nas lojas e supermercados e menos produtos ficam guardados na despensa. Esse modelo, apesar de cortar custos significativos no orçamento das empresas, saiu como um tiro pela culatra no atual cenário do país: sem a chegada diária de produtos, o setor de serviços e varejo se viu sem estoque para amortecer a demanda e as mercadorias começaram a desaparecer das prateleiras dentro de 3 a 5 dias de greve. Nos supermercados, primeiro faltam as frutas e legumes, por sua alta perecibilidade. Depois, produtos com grande rotatividade como leite e ovos. Para piorar tudo, o medo do desabastecimento leva as pessoas a estocarem suas próprias casas, aumentando as consequências da ausência do serviço dos caminhoneiros.
Por todos os motivos apresentados no texto, o governo tem se desdobrado para conseguir chegar a um acordo que agrade a todos os envolvidos - e que resolva a situação o mais rápido possível. Contudo, mesmo com a normalização das atividades, as empresas ainda precisam se preocupar com o efeito chicote que a alteração no abastecimento possa causar em sua supply chain.
O efeito chicote é uma consequência de informações distorcidas ao longo de uma cadeia. Em geral, ele é causado por má previsões da demanda por certos produtos, dificultando programações de estoque e criando prejuízos para as empresas. Variações nos preços e situações de racionamento são duas das principais causas do efeito chicote. No cenário atual, por conta do forte desabastecimento sofrido em alguns setores, a demanda dos consumidores será muito difícil de prever: pelos próximos 15 a 30 dias as pessoas vão comprar seus produtos diferentemente de como elas tendem a comprar em situações normais - e é um desafio para o setor de logística quantificar essa mudança, para que não ocorra excesso ou falta de estoque, por exemplo. O que acontece, muitas vezes, é o representado pelo gráfico de comportamento dos estoques abaixo.

Até a cadeia conseguir estabilizar seus pedidos e suprir a demanda do mercado de maneira eficaz, a variação no número de unidades fornecidas pode ser expressivo. Assim, como nos dois primeiros meses foi pedido ao fornecedor mais de 70 unidades de produto, nos meses seguintes foi necessário cortar esse recurso pela metade, já que vieram em excesso anteriormente. O objetivo é conseguir encontrar o ponto ideal de pedidos. Um exemplo de empresa que sofrerá um forte efeito chicote nos próximos dias é a própria Petrobras. Com o desabastecimento completo de quase todos os postos de gasolina no Rio de Janeiro, filas quilométricas se formam para abastecer nos poucos postos que começaram a ter a gasolina reposta. A tendência é que esse cenário se estenda por mais alguns dias, com muitas pessoas com o tanque do carro zerado após dias sem poder abastecer. Quanto a mais a Petrobras terá que fornecer para os postos para suprir essa demanda extra? E quando ela poderá voltar a sua distribuição normal? Essas são as perguntas chave para os diretores de logística e contorná-las é essencial para que a empresa não acumule um rombo ainda maior nas suas contas após a greve. Desta maneira, quanto maior for a duração da paralisação atual, maior será o impacto e as consequências do efeito chicote nas empresas.
A grande questão que fica para os próximos dias é em relação ao impacto desta greve no longo prazo, político e econômico. Quais medidas serão tomadas para impedir que futuras greves tenham o abalo logístico que essa paralisação causou? Qual será o resultado das contas do governo após as concessões feitas aos caminhoneiros? Quanto tempo a bolsa de valores e a Petrobras irão levar para se recuperar? E, claro, quando as prateleiras dos mercados vão voltar a ter seus produtos abastecidos?
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