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China em xeque: A estagnação do modelo econômico chinês




Nos últimos 30 anos, a China experimentou um crescimento exponencial, criando a expectativa de que poderia ultrapassar os Estados Unidos e se tornar a principal potência mundial. Contudo, uma crise de dívida, impulsionada pela dependência chinesa do setor imobiliário, vem crescendo silenciosamente ao longo dos anos, levantando dúvidas sobre a sustentabilidade dessa contínua expansão.


O contexto histórico


Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1949, teve início na China a Era de Mao Tsé-Tung¹. Sob o governo comunista, as políticas eram caracterizadas por um planejamento centralizado e uma ênfase na igualdade social, com o foco na busca por ideias socialistas, como a reforma agrária, a remoção de influências estrangeiras no país e o controle estatal sobre os meios de produção. Entretanto, essa abordagem resultou em períodos de instabilidade econômica e crises, com a produção agrícola e industrial sendo afetadas negativamente.


Com a morte de Mao, a China embarcou em uma jornada de reformas econômicas que mudaram significativamente o curso do país. Deng Xiaoping, o presidente a partir de 1978, declarou: "Não importa se o gato é preto ou branco, contanto que pegue ratos". Essa declaração simbolizava a disposição de abandonar as amarras ideológicas que o líder anterior seguia e abraçar uma abordagem mais pragmática em direção ao desenvolvimento.


Afastando-se das políticas de planejamento centralizado de Mao, Xiaoping buscou incentivar a iniciativa privada, introduzir elementos de mercado e abrir a China ao comércio internacional, mesmo que mantendo o Estado centralizado. Essa abertura econômica, gradual e controlada, marcou o início de um período de transformação e crescimento exponencial para o país.

As reformas lideradas por Deng Xiaoping marcaram um ponto de virada crucial na economia chinesa. Entre as estratégias adotadas para promover um crescimento acelerado, destacam-se a criação das zonas econômicas especiais (ZEEs)² e políticas que facilitaram significativamente o acesso ao crédito para empresas e cidadãos. 


Em primeiro plano, o modelo de expansão começou a ter um grande efeito, e  impulsionou a economia chinesa para o cenário global, atingindo a posição de segunda maior potência no mundo. No entanto, a longo prazo, revelou-se duplamente ambíguo ao promover um vigoroso crescimento econômico e, ao mesmo tempo, gerar um complexo problema de endividamento. Essa acessibilidade ao crédito deu origem a um desafio latente: a crescente dívida na China. O problema desse método para o país não foi usar crédito fácil para crescer, mas sim a falta de planejamento a longo prazo, uma vez que o governo, considerando que o crescimento nunca ia parar, tomou medidas com base na constância dessa expansão, o que levou à situação atual no país. Para exemplificar, ao longo dos últimos dez anos, mesmo com o grande crescimento do país, a razão entre a sua dívida nacional e o seu PIB vem crescendo cerca de 4% ao ano. Dessa forma, a crise chinesa tomou conta do país, liderada pela queda do mercado imobiliário e o efeito negativo dos Shadow Banks na economia.


O crescimento do mercado imobiliário


Durante décadas, a economia chinesa contou com a força do setor imobiliário, cujo crescimento, no começo, era alimentado pelo grande investimento do governo e por um “boom” da população urbana, causado tanto por conta de um êxodo rural, quanto pela alta taxa de natalidade do país. Esse mercado não apenas desempenhava um papel crucial na geração de empregos, mas também se configurava como um ponto de referência para a acumulação de riqueza pela crescente classe média chinesa. Assim, esse setor, além de fornecer moradias, tinha uma função essencial como ativo de investimento e reserva de valor para os chineses, estabelecendo-se como uma peça central na estratégia financeira da população e do Estado, que por meio do mercado imobiliário pode inflar ainda mais o PIB do país.

Além disso, a relevância do ramo não era só para os cidadãos que investiram nele, mas também para os governos locais que dependiam das receitas geradas pelas vendas de terrenos. Essa utilização do mercado imobiliário como forma de investimento especulativo popularizou, ao longo dos anos, aportes em propriedades prontas e unidades na planta. O aumento nas vendas de unidades para investidores, sem a intenção de moradia, deu origem ao fenômeno conhecido como "cidades fantasmas". Esses empreendimentos imobiliários são cidades construídas do zero majoritariamente como forma de investimento, resultando em áreas urbanas com muitos prédios e poucos moradores. Tal fenômeno acabou se tornando um dos principais reflexos da estratégia de crescimento do país.


Reformas e a crise


Diante desse cenário, o governo chinês identificou a necessidade de intervenção para evitar uma possível crise de dívidas no mercado imobiliário, visto que, de acordo com a fala do próprio presidente Xi Jinping: "Casas são para morar e não para especulação". Essa situação ficou evidente em 2021, quando foi levantado o dado de que a China construiu cinco vezes mais imóveis do que a Europa e os Estados Unidos juntos, sendo que mais de 90% das pessoas no país já têm um local para morar. Diante disso, o governo introduziu a política das “3 linhas vermelhas” como uma medida concreta para lidar com essa situação. Essa política, implementada com o objetivo de mitigar os riscos associados aos grandes valores devidos no setor imobiliário, estabeleceu limites específicos para as dívidas e empréstimos permitidos às empresas do ramo. Ao definir essas limitações, o intuito seria criar uma base mais controlada para o desenvolvimento do mercado imobiliário, evitando problemas financeiros que poderiam gerar um efeito cascata na economia geral do país. No entanto, o impacto foi exatamente o oposto. 


As restrições impostas geraram desafios para diversas empresas, em especial a Evergrande, na época a segunda maior companhia do mercado imobiliário chinês, que tinha grande parte do seu valor em empréstimos. A companhia começou a enfrentar dificuldades em concluir a construção de apartamentos e casas já vendidos e, incapaz de cumprir seus compromissos financeiros, deixou de pagar suas dívidas em 2021, declarando falência em agosto de 2023. 


Essa situação fez com que a empresa não entregasse os apartamentos para as pessoas que já tinham comprado, diminuindo a confiança do povo no mercado. Isso, aliado ao crescimento estagnado da população chinesa e às restrições impostas pelo país durante a pandemia, que gerou uma maior incerteza financeira na China e no mundo, fizeram com que as pessoas parassem de comprar imóveis. Em vista disso, o setor como um todo entrou em queda, já que ele funcionava similar a um esquema de pirâmide, onde os novos compradores pagavam pela construção dos compradores passados. Porém, sem essa entrada de novos compradores, o setor inteiro entrou em colapso, de forma que agora em 2023, a Country Garden, a maior desenvolvedora imobiliária do país, está seguindo um caminho muito similar a Evergrande, se aproximando à falência.

Shadow Banks


Na China, devido a um um ambiente regulatório complexo e à natureza altamente controlada do setor financeiro, existem restrições significativas no mercado bancário convencional destinadas a manter a estabilidade econômica e controlar o sistema financeiro. Essas restrições criam um ambiente onde os bancos convencionais são limitados em número, e a entrada de novos participantes enfrenta barreiras substanciais.


Devido a essa limitação dos bancos convencionais, uma prática comum entre os cidadãos é depositar seus fundos em alternativas conhecidas como "Shadow Banks". Essas instituições, embora sejam totalmente legais, não possuem oficialmente o status de bancos, mas desempenham funções semelhantes, oferecendo retornos mais atrativos em comparação com os bancos tradicionais. Ao contrário dos bancos convencionais, os Shadow Banks operam em um ambiente menos regulamentado, o que significa que oferecem taxas de retorno mais elevadas, estando sujeitos a mais riscos devido à falta de supervisão efetiva e também realizam empréstimos mais fáceis, e consequentemente, mais arriscados. Por oferecer esse acesso mais fácil ao crédito para empresas pequenas e médias, os Shadow Banks acabam desempenhando um importante papel na economia chinesa, justificando assim o auxílio e proteção que essas instituições recebem do governo chines.

 

Por ter sido considerado seguro por muito tempo, o mercado imobiliário era utilizado como um dos principais investimentos desses Shadow Banks. Neles, pessoas e empresas botavam o seu dinheiro, que era então emprestado para as desenvolvedoras imobiliárias que depois pagavam esses empréstimos com juros para os bancos, gerando esse alto retorno. Porém, com a recente crise no mercado, as empresas começaram a não conseguir pagar as suas dívidas aos bancos, fazendo com que o capital investido deixasse de retornar aos investidores, tanto empresas como cidadãos chineses.


Essa falta nos pagamentos dos Shadow Banks acaba gerando um ciclo, onde as pessoas, ao não receberem o seu dinheiro do banco, param de movimentar a economia e, principalmente, de investir em apartamentos e casas. Tal situação gera mais dificuldades para as imobiliárias pagarem suas dívidas, o que piora ainda mais a situação dos bancos.


Impacto no mundo


Ao analisar os impactos da crise no mundo, é crucial considerar o papel dos investimentos chineses em outros países, uma prática que ganhou destaque nos últimos anos. O governo chinês, juntamente com empresas privadas, direcionou grandes montantes para projetos de infraestrutura em mais de 150 países, como parte da Iniciativa Belt and Road³. No entanto, há indícios de que essa abordagem de investimento possa sofrer grandes reduções diante das atuais dificuldades econômicas internas na China. A continuidade do comprometimento chinês com esses projetos pode ser afetada se os problemas econômicos persistirem no país. Portanto, a crise interna não impacta apenas a economia doméstica, mas também levanta questões sobre o futuro dos significativos investimentos chineses em infraestrutura ao redor do mundo.


Além disso, as importações e exportações da China tiveram uma grande queda, o que teve e terá um impacto mais forte nos países que realizam muitas exportações para o mercado chinês, como o Brasil. Com a crise no setor imobiliário chinês, as vendas de casas e o número de novas construções estão em declínio, o que afeta diretamente a demanda por minério de ferro e outros materiais essenciais da cadeia produtiva. Esse cenário resultará em uma queda nos preços do minério de ferro no mercado internacional, prejudicando as receitas das empresas exportadoras, o que tem um grande impacto no Brasil, visto que esse recurso é o terceiro produto mais exportado pelo país.


Outro impacto refere-se à redução na demanda chinesa por produtos externos, devido à crise econômica. Com a diminuição dos empregos e da renda dos chineses, observa-se uma queda no consumo interno, afetando diretamente as exportações de diversos países, incluindo o Brasil. Sendo a China o maior parceiro comercial brasileiro, a diminuição do consumo chinês tem implicações significativas para a economia brasileira. Assim, a redução do consumo chinês não impacta apenas a demanda por produtos brasileiros, mas também tem o potencial de enfraquecer significativamente os níveis de arrecadação do país.

O futuro do país e do povo


Embora a crise chinesa tenha repercussões significativas na economia global, os impactos mais profundos são sentidos pela própria população. As perdas financeiras nos investimentos imobiliários e nas economias depositadas nos bancos afetam diretamente o sustento das pessoas. Essa situação está gerando um aumento notável na insatisfação popular, manifestando-se em uma série de protestos em um contexto em que a China é reconhecida pelo seu histórico de autoritarismo. Apesar de algumas tentativas do governo para combater isso, como reduções nos requisitos para investimentos iniciais na compra de casas e permissão para reduzir as taxas de hipotecas de imóveis já vendidos, a crise persiste, e com a possível tendência de envelhecimento da população, a previsão é de que esse excesso de imóveis só piore com o passar dos anos. Dessa forma, com os olhares do mundo voltados para o desenrolar dos acontecimentos, aguarda-se atentamente os próximos passos do governo chinês diante desse cenário.


Glossário:


Era Mao Tsé-Tung:

Como líder fundador da República Popular da China, Mao implementou políticas como o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural. Essas iniciativas buscavam acelerar o desenvolvimento econômico e reforçar o comunismo, mas resultaram em dificuldades econômicas, fome e instabilidade social. Apesar de sua contribuição para unificar a China, as políticas de Mao foram controversas, gerando impactos adversos significativos.


ZEEs:

Áreas criadas a partir dos anos 1980 para atrair investimentos estrangeiros e impulsionar o desenvolvimento econômico por meio de leis de negócios e comércio diferentes do resto do país e de incentivos fiscais.

 

Iniciativa Belt and Road:

Projeto chinês lançado em 2013 para fortalecer a cooperação entre países emergentes ao redor do mundo. Foca na construção de infraestrutura, comércio e cooperação econômica, abrangendo rotas terrestres e marítimas em regiões como Ásia, Europa e África. Principalmente financiado por fundos estatais.



Referências

BRIEFING, China. What’s happening in china’s property market? An explainer. China Briefing News. Disponível em: <https://www.china-briefing.com/news/explainer-whats-going-on-in-chinas-property-market/>. Acesso em: 28 nov. 2023.

EDWARD MORENO, J. What to know about China’s real estate crisis. The New York times, 2023. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2023/08/21/business/china-economy-real-estate-crisis.html>. Acesso em: 28 nov. 2023.

MARSH, Nick. What China’s economic problems mean for the world. BBC, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/business-66840367>. Acesso em: 28 nov. 2023.

WAKABAYASHI, Daisuke; FU, Claire. Real estate crisis triggers new alarms over China’s shadow banks. The New York times, 2023. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2023/09/22/business/china-economy-trusts-zhongrong-zhongzhi.html>. Acesso em: 28 nov. 2023.

China’s total export & import values by country/region, June 2023 (in USD). Gov.cn. Disponível em: <http://english.customs.gov.cn/Statics/cbfec331-286b-49f1-ab4d-fe6512bc81d8.html>. Acesso em: 28 nov. 2023.

China Real Estate Inv: Year to date: Other. Ceicdata.com. Disponível em: <https://www.ceicdata.com/en/china/real-estate-investment-monthly-summary/real-estate-inv-ytd-other>. Acesso em: 28 nov. 2023.

Part of China’s economic miracle was a mirage. Reality check is next. Reuters, 2023. Disponível em: <https://www.reuters.com/world/china/part-chinas-economic-miracle-was-mirage-reality-check-is-next-2023-09-03/>. Acesso em: 28 nov. 2023.


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