"O problema do Flamengo é o seguinte: acabou o dinheiro!". Essa frase foi dita por Márcio Braga, ex-presidente do Flamengo, em 2009, quando o clube enfrentava uma dívida de mais de R$ 140 milhões, sem ter previsões de como pagá-la. Tal realidade foi presente em grande parte da história recente do time, porém, com medidas inovadoras para a época, conseguiu reverter esse cenário e se tornar o primeiro clube brasileiro a faturar R$ 1 bilhão por ano. Sendo assim, a seguinte questão fica em aberto: como foi o processo de tornar o Flamengo a potência que é hoje?
Terra arrasada
Contratação de jogadores a cifras fora da então realidade do Clube, baixa diversificação de fontes de receita e erros graves na administração financeira teve como consequência a recorrente contração e o acúmulo de dívidas, que mancharam a confiança dos credores no Rubro-Negro. “O cenário era de terra arrasada”, as palavras proferidas por Claudio Pracownik, vice-presidente das pastas de Planejamento, Administração e Finanças em 2013, refletem anos de decisões e omissões que visavam satisfazer objetivos a curto prazo da gestão em cargo.
Mesmo carregando esse passivo, o Flamengo foi capaz de se manter relevante no cenário nacional de futebol em seu mais crítico período financeiro, e ainda conquistar títulos de expressão. Paralelamente a isso, uma parcela da esfera política do Clube percebeu que esses resultados não estavam espelhando uma saúde financeira estável, e por isso, em 2012, elegeram-se como nova diretoria, visando conduzir uma reforma estrutural no Rubro-Negro. Antes de resolver tais problemas do Clube, a nova gestão buscou entender qual seria a origem e, principalmente, a dimensão do rombo financeiro do período, chegando nas seguintes causas:
Dívida acumulada
Encontrando-se incapaz de organizar suas finanças, o Flamengo contratou a auditoria Ernst & Young (EY) para estimar o déficit total do Clube, chegando ao valor de R$ 737 milhões. Além disso, o faturamento no ano foi de aproximadamente 200 milhões de reais, o que impediu diretamente o pagamento de tal quantia.
Com isso, o time sofreu com problemas estruturais, como o custoso vazamento da piscina olímpica de R$ 500 mil mensais para a concessionária de água e esgoto do Rio de Janeiro (Cedae) e os atrasos no pagamento dos salários dos jogadores, que geraram mais de 600 processos trabalhistas contra o Clube. Ademais, o não pagamento de impostos ao governo se tornaram, ao longo dos anos, a maior dívida do Rubro-Negro.
Entretanto, embora essas dificuldades aparentassem ser as piores, o maior problema do Flamengo era a consequência delas: a perda de confiança ética e moral na instituição, que agora era vista como má pagadora e sem os princípios que sustentam qualquer instituição.
Amadorismo em processos
Foi registrado que havia pouco ou quase nenhum controle sobre o quadro dos funcionários do Clube, tendo funcionários que recebiam salário mesmo não trabalhando mais para o Flamengo. Tal fato dificultou a ação de empresas terceirizadas para auxiliar na gestão interna do time, além de descredibilizar diversas informações do passado do time, levando a própria auditoria a declarar que os demonstrativos financeiros de 2010 e de 2011 não condiziam com a realidade.
Como exemplo disso, a garagem do clube era, muitas vezes, explorada por moradores de prédios próximos, que anunciavam seus imóveis para aluguel ou venda, indicando “vaga de garagem” mesmo sem haver alguma disponível na escritura do condomínio. Dessa forma, o pagamento desse aluguel era mediante uma irrisória mensalidade ao Flamengo de cerca de R$ 100,00 para ter livre acesso.
Baixa diversificação das fontes de renda
Um raso planejamento estratégico para o futuro do Clube aliado a uma baixa profissionalização da equipe de Marketing resultou em uma forte dependência da concentração da renda do time com o seu desempenho em campeonatos, receita essa que vinha majoritariamente de direitos de transmissão de TV. Entretanto, tal performance nos campeonatos buscava ser obtida mediante contratações de jogadores que representavam um investimento desalinhado com a situação financeira do Flamengo, como por exemplo a chegada de Ronaldinho Gaúcho em 2011, no qual mesmo que sem realizar a compra de outra instituição, debitava R$ 1,3 milhões mensalmente para o jogador. Esse ciclo se repetiu durante anos, porém ele não se mostrou um modelo sustentável a longo prazo, já que falhava com qualquer resultado negativo do time, o que é extremamente imprevisível.
Dessa forma, evidenciando-se os principais déficits do Clube, a nova diretoria se propôs a buscar formas de aliviar a dívida e criar um plano de crescimento sustentável a longo prazo para o Rubro-Negro.
A reconstrução
Com uma gestão ocupada por ex-executivos de grandes empresas, como BNDES, BR Distribuidora e OGX, o Clube passou a incorporar uma postura de empresa e a tomar medidas necessárias em uma situação de falência, mudando suas práticas internas para executar decisões que focassem em administrar a dívida vigente no período. Dito isso, para implementar essa nova política, foram feitas diversas mudanças que podem ser agrupadas em 3 principais pontos:
Responsabilidade fiscal
Advindo da troca de mentalidade do Clube, foi elaborado um intenso corte de gastos, tendo como principais alvos jogadores com altos salários e desempenho esportivo abaixo do esperado. Logo, um dos principais cortes nesse período foi a devolução do atacante Vagner Love, que foi contratado do CSKA Moskow, beneficiando o Flamengo com uma economia mensal de R$ 500.000 do seu salário, além de outros R$ 8 milhões que restavam de sua transferência.
Nesse sentido, visando diversificar as fontes de receita, o Clube também iniciou em 2013 o seu programa de sócio-torcedor, que, alavancado pelo bom desempenho do time, chegando a ser finalista da Copa do Brasil no mesmo ano, gerou uma arrecadação de R$ 17 milhões no seu período de lançamento, representando 6% de sua receita.
Além disso, houve uma intensificação nos investimentos direcionados às categorias de base do time, gerando um aumento no retorno com a venda de jogadores. Os maiores exemplos desse movimento foram Lucas Paquetá e Vinícius Jr., que, em transação com clubes europeus, chegaram a ultrapassar os R$ 200 milhões entre 2016 e 2018.
Reconciliação judicial
Para recuperar a confiança de seus credores, o Rubro-Negro renegociou o pagamento das dívidas, que, com medidas responsáveis sendo tomadas no dia a dia da empresa, começaram a mudar sua percepção sobre o Clube e a ceder condições favoráveis a sua renegociação. Ademais, o Flamengo e diversos clubes nacionais tiraram proveito da então recém-criada lei Profut, que condicionava o parcelamento extremo de suas dívidas com o Governo Federal (dívidas fiscais), em até 240 vezes - 20 anos.
Mudanças estruturais
Após a auditoria realizada, faltava ainda uma estrutura de dados que conseguisse suportar avanços maiores em sua gestão interna e servir de base para a consultora auditar os balanços financeiros do Flamengo. Com isso em mente, o Clube implementou um sistema de gestão empresarial (ERP¹), centralizando e integrando suas informações operacionais em apenas um local, seguindo a linha de diversos clubes europeus que utilizam adaptações dele para sua gestão back-office². Além disso, o Flamengo implementou, em parceria com uma empresa, um setor de data analytics³ para o desempenho dos jogadores. Essa equipe coleta e acumula informações sobre as atuações dos jogadores, auxiliando na tomada de decisão da comissão técnica do elenco.
Ademais, com um investimento de aproximadamente R$ 38 milhões, foi construído um novo centro de treinamento, que, como exigência da então diretoria, deveria ter a qualidade e funcionalidades usadas em times de ponta da Europa. Tornando, o Rubro-Negro um destino atrativo para jogadores de alto nível.
As transformações na primeira gestão do ex-presidente do Clube Eduardo Bandeira de Mello geraram efeitos claros no balanço financeiro da equipe, que mostrou uma redução drástica em suas dívidas e pode projetar sustentáveis planos para o time.
Os frutos colhidos
Após um período de frustrações no âmbito esportivo, com o Flamengo escapando diversas vezes do rebaixamento e seguidos vice-campeonatos, o Clube, em 2015, teve sua primeira contratação de grande expressão: Paulo Guerrero, um atacante peruano que marcaria o início de uma nova era para o rubro-negro carioca. Posteriormente a isso, o clube realizou diversas contratações nos anos subsequentes, tendo gastado, em 2016, R$ 67,7 milhões, para 2017 foram R$ 58 milhões e em 2018, R$ 120 milhões.
Enquanto o faturamento foi aumentando com o passar dos anos, o endividamento foi diminuindo. Assim, ao fim de 2018, a dívida passou de (valor antes) para 455 milhões de reais. Uma das principais reduções ocorreu para a dívida bancária, que foi contraída quando o clube precisou fazer empréstimos para investimentos na base e no futebol. Ele chegou a ser de R$ 162 milhões em 2015 e caiu para R$ 25 milhões três anos depois – apenas 5% do total da dívida.
Outrossim, os débitos trabalhistas reduziram aproximadamente um terço. Em 2012, o clube era réu em mais de 600 ações na Justiça do Trabalho, segundo Bandeira de Mello, a dívida trabalhista era de 193 milhões de reais em 2012 e passou para 60 milhões em 2018.
A Glória eterna
Após anos de recuperação, o Flamengo conseguiu montar um elenco e uma estrutura que fossem extremamente competitivos, para que em 2019 iniciasse a era vencedora do Clube, se estabelecendo como o maior time da América Latina no aspecto econômico e esportivo. Ganhando praticamente todos os títulos de expressão no ano, o time conseguiu uma alta visibilidade, o que atraiu novos contratos de patrocinadores e parceiros, além de reposicionar o branding do Rubro-Negro para algo que reproduzisse o sucesso obtido nos gramados. Contudo, paralelamente a essa recente onda de vitória, as expectativas dos torcedores estão se mantendo em níveis altos, o que apresenta certo risco a algumas das fontes de receita do Flamengo atreladas indiretamente ao desempenho do time nas competições.
A gestão responsável e visando o benefício a longo prazo foram os causadores dessa virada de chave na trajetória do Flamengo, gestão essa que é considerada exemplar aos times brasileiros que enfrentam dificuldades financeiras. A adoção dessas medidas pelos times nacionais, tornaria a liga mais competitiva, diminuindo o delta de visibilidade que ligas europeias como a Premier League tem em relação a brasileira.
Glossário:
1- ERP: ERP é “Enterprise Resource Planning” ou sistema de gestão integrado. Essa tecnologia auxilia o gestor da empresa a melhorar os processos internos e integrar as atividades de diferentes setores, como vendas, finanças, estoque e recursos humanos
2- Back office: Back Office é o conjunto de setores e funções administrativas que estão por trás do funcionamento de uma empresa. Áreas jurídicas, financeiras, RH, contabilidade e outras.
3- Data analytics: Data analytics é o processo de analisar as informações do seu negócio para encontrar insights valiosos para sua operação.
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