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​Consultoria em Xeque: Como mudanças políticas podem impactar um mercado consolidado



Uma consultoria é basicamente uma busca por respostas por meio de conselhos que resultam em ações, que trazem um retorno positivo, seja maior lucratividade ou rentabilidade. Há muitos anos, os humanos têm a cultura de conselheiro ou guia para auxiliar nas decisões, mas que só veio a se tornar uma profissão muito tempo depois. Por décadas, o setor de consultoria foi sinônimo de contratos robustos, relações de longo prazo e uma posição quase inquestionável frente aos seus clientes. Grandes firmas dominaram o mercado com modelos tradicionais, baseados em entregas padronizadas, longos relatórios e estratégias que não contavam com grandes inovações. No entanto, esse cenário vem mudando desde o início de 2025, quando o  governo dos Estados Unidos passou a questionar o real impacto das consultorias, tendo em mente seus contratos de alto custo, iniciando auditorias e cortes de contratos bilionários. Esse movimento abriu espaço para novas discussões sobre o valor entregue pelas consultorias, a dependência do setor público e o papel das tecnologias emergentes, como a inteligência artificial, na transformação do setor. Diante desse panorama, impõe-se a questão: o setor de consultoria será capaz de sobreviver a essas adversidades?


Mercado estável antes da crise


A consultoria pode ser descrita como uma espécie de médico das empresas. Esse conceito se popularizou, principalmente, por conta do seu propósito de  ajudar empresas a definir e implementar soluções para melhorar sua posição no mercado, otimizar seus recursos e alcançar seus objetivos, focando no planejamento ou na tomada de decisões. Assim, trazendo soluções através de profissionais com expertise para auxiliar na superação de desafios e promover o crescimento. No panorama mundial, esse mercado teve grande parte de seu crescimento impulsionado por uma demanda em expansão por serviços especializados em operações, estratégia e tecnologia. A alta procura veio por parte das empresas que enfrentavam desafios de globalização, concorrência intensa, rápidas mudanças tecnológicas e a necessidade constante de inovações. Acarretando em uma diferença de US$ 870 bilhões em vendas de serviços de consultoria de 2022 para 2024. Assim, aproveitando esse espaço para a atuação, as consultorias souberam se adaptar, incorporando tecnologias emergentes. Diante dessa habilidade, o mercado mundial de consultoria deve crescer a um ritmo médio de 10% ao ano, o que elevaria as cifras do jogo para US$ 1,3 trilhão em 2026, de acordo com a Statista.

 

Mesmo tendo que se adaptar às transformações do mercado, o setor de consultoria estratégica já faz isso há muito tempo, adaptando-se historicamente às mudanças econômicas, políticas e tecnológicas. Entre as décadas de 1950 e 1970, essas empresas estavam centradas na eficiência operacional, com consultorias pioneiras, como a McKinsey liderando o setor. Na década de 1990, com a ascensão da tecnologia e da digitalização, as empresas começaram a buscar consultorias para implementar novas tecnologias, como sistemas ERP2 e soluções de e-commerce, que se tornaram comuns no mercado global de consultoria em TI. Além disso, a crise financeira de 2008 impulsionou uma nova demanda por consultorias, focadas em reestruturação e recuperação financeira. Durante a década de 2010, a recuperação econômica e o avanço da tecnologia continuaram a expandir o mercado consultivo, até que a pandemia de 2020 inaugurou uma nova fase de aceleração digital, com uma projeção, realizada pela SAP, de US$15 bilhões sendo investidos globalmente em consultoria para implementar soluções de trabalho remoto e estratégias de adaptação ao novo normal. Nos últimos anos, as consultorias começaram a se concentrar em temas como sustentabilidade e implementação de IA, alinhando-se às expectativas do mercado por práticas empresariais responsáveis.


Dentre todos os mercados, os Estados Unidos consolidaram-se como o epicentro global da indústria de consultoria, concentrando quase 50% das receitas mundiais do setor. A robustez do mercado americano pode ser explicada por múltiplos fatores: a maturidade da economia, a densidade de grandes corporações, a alta rotatividade executiva, a forte atuação do Estado em áreas estratégicas — como defesa, tecnologia e saúde — e, principalmente, o fato de que as principais firmas globais de consultoria foram criadas ou têm suas sedes no país, incluindo as Big 3 (McKinsey, BCG e Bain & Company).


O mercado americano também contava com uma forte aliança entre o setor público e as consultorias privadas. Instituições como o Departamento de Defesa, a Administração de Serviços Gerais (GSA) e as agências federais contratavam rotineiramente consultorias para projetos de modernização administrativa, transformação digital e análise estratégica, alimentando um ciclo virtuoso de demanda e inovação. Entre os anos fiscais de 2019 e 2023, as agências federais destinaram mais de US$ 500 bilhões a contratos relacionados a serviços de consultoria, com foco em áreas de defesa, inteligência, modernização organizacional e cibersegurança, com o Departamento de Defesa (DoD) representando mais de 46% desse total. Empresas como Deloitte, Accenture e Booz Allen Hamilton estavam entre as principais beneficiárias desses contratos.


Mudanças no mercado de consultoria


O crescimento exponencial das inovações relacionadas à inteligência artificial vem impactando inúmeros setores globalmente, incluindo o de consultoria estratégica. Ela não apenas aumenta a eficiência operacional, mas também expande a capacidade analítica das consultorias, permitindo que ofereçam insights mais rápidos, profundos e personalizados para seus clientes. ​De acordo com o relatório PwC 2025 AI Business Predictions, a inteligência artificial (IA) está se consolidando como um elemento central nas estratégias empresariais. A pesquisa revelou que 49% dos líderes de tecnologia já integraram totalmente a IA em suas estratégias corporativas. Desse modo, tal tendência tem desafiado o modelo tradicional de atuação das empresas de consultoria estratégica, destacando-se como um vetor de disrupção no setor, ao levar organizações a buscarem ferramentas tecnológicas como alternativas, como o desenvolvimento de produtos, como softwares, aplicativos e APIs, na sustentação ou no alcance de resultados. Um exemplo é a McKinsey, que utiliza IA para automação de processos repetitivos, auxílio em decisões estratégicas, com modelagem preditiva, simulações com LLMs, e muitas outras.



Além da adoção dessas tecnologias em suas atuações no geral, outra tendência no panorama atual, com a crescente pressão por sustentabilidade, é que as consultorias passaram a focar também em soluções que ajudam empresas a se alinhar a práticas de responsabilidade social e ambiental, impulsionando a consultoria em ESG. O estudo "ESG no topo da agenda corporativa", conduzido pela Bain & Company, entrevistou cerca de 30 CEOs brasileiros de diversos setores, como bens de consumo, serviços financeiros, varejo, indústria química e agronegócio. A pesquisa revelou que, embora 100% dos executivos reconheçam a importância crítica das práticas ESG (Ambiental, Social e Governança), mais de 80% expressaram insatisfação com a velocidade de transformação em suas organizações. Hoje, 90% das empresas líderes têm programas de ESG fundamentados. De doações milionárias ao apoio a causas, as consultorias buscam unir o discurso e a prática em um trabalho modelo para seus clientes.


Revisão de contratos públicos: por que as gigantes estão na mira


Apesar dessa habilidade de rápida adaptação e adoção de tendências do mercado de consultoria, os contratos no setor ainda despertaram a atenção do governo norte americano. No início de 2025, o governo de Donald Trump iniciou nos Estados Unidos uma ofensiva inédita contra contratos bilionários firmados com grandes empresas de consultoria.

A medida surpreendeu o mercado, abalando a aparente estabilidade de um setor que, por décadas, manteve com o Estado norte-americano uma relação quase simbiótica. Criado em resposta a pressões populares de viés conservador por austeridade e transparência, o DOGE (Department of Government Efficiency) foi concebido para funcionar como braço fiscalizador autônomo. Ele foi inspirado em modelos de auditoria, ou análise das atividades desenvolvidas em determinada organização, neozelandeses e britânicos, que combinam independência institucional e avaliam não apenas o uso correto de recursos públicos, mas também a efetividade e o impacto real das políticas governamentais. A National Audit Office (NAO), equivalente ao DOGE, reporta que a melhoria no gerenciamento de contratos e execução de políticas públicas ajudou o governo do Reino Unido a economizar bilhões de libras. Um estudo de 2019, publicado pelo Comitê de Contas Públicas do Parlamento do Reino Unido apontou que o setor público britânico economizou até £1,4 bilhão através de auditorias e controle de gastos. 


A partir disso, iniciou-se nos EUA uma ampla auditoria dos contratos públicos com empresas, que, juntas, movimentam anualmente bilhões de dólares em projetos. Em fevereiro de 2025, a GSA4 solicitou que agências federais revisassem seus contratos com as 10 empresas de consultoria mais bem remuneradas, incluindo Deloitte, Accenture e Booz Allen Hamilton. Essas empresas estavam programadas para receber mais de US$ 65 bilhões em taxas a partir de 2025. Entretanto, a GSA instruiu as agências a manter apenas os contratos considerados essenciais para a missão e que fornecessem suporte técnico substancial. A revisão dos contratos foi fortalecida com os argumentos de pensadores críticos como Mariana Mazzucato, economista renomada e autora da obra The Big Con. Em sua análise contundente, Mazzucato sustenta que o Estado e não o setor privado é o principal motor das inovações estruturante e aponta para uma falha estrutural no modelo atual de governança pública: a terceirização excessiva de funções estratégicas às consultorias privadas, que estaria minando a capacidade dos Estados de inovar, planejar e agir de forma autônoma. Segundo ela, ao transferir sistematicamente suas funções analíticas, administrativas e operacionais para agentes externos, o Estado compromete sua soberania técnica e sua capacidade de construir soluções públicas sustentáveis.



O objetivo da iniciativa era claro: entender, de forma concreta, qual valor real essas empresas, fornecendo apoio em estratégias militares e tecnologias de segurança nacional, estavam agregando para o governo. A lógica por trás das revisões contratuais ia além da simples contenção de gastos — tratava-se de uma tentativa de resgatar a autonomia estratégica do Estado, questionando o grau de dependência e a efetividade dos serviços prestados.


Diante desse contexto, essa dúvida, do real valor das empresas de consultoria, passou a ocupar o centro do debate público, reacendendo discussões sobre accountability3, eficiência e soberania administrativa.


Efeitos das mudanças políticas no setor


Diante desse cenário, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DoD) deu um passo ousado e emblemático em sua tentativa de reestruturar seus contratos com grandes empresas de consultoria. A decisão, assinada pelo secretário de Defesa Pete Hegseth em um memorando oficial, sinaliza uma mudança estratégica importante nas relações entre o governo federal e as maiores empresas de consultoria, que tradicionalmente dominam o setor público. A iniciativa resultou no cancelamento de mais de 6.000 contratos em todo o governo federal, com estimativas de economia de aproximadamente US$ 50 bilhões por ano. No entanto, análises indicam que cerca de 40% dos contratos cancelados não resultarão em economia real, pois os valores já haviam sido comprometidos legalmente, ou seja, têm cláusulas contratuais que envolvem pagamentos antecipados ou acordos financeiros de longo prazo. Embora as grandes consultorias não sejam as únicas afetadas, elas certamente são as mais visíveis devido à sua presença consolidada no mercado público.


Essa nova postura representa uma ameaça direta e significativa para muitas dessas grandes empresas, que historicamente dependem do governo como uma das principais fontes de receita, como a Booz Allen Hamilton que possui 90% da sua receita proveniente do governo. A decisão de cortar ou reavaliar esses acordos coloca essas empresas em uma posição vulnerável, forçando-as a repensar suas estratégias de negócios e a explorar novos mercados, como o privado e o internacional. A Deloitte, por exemplo, que possui 9% da sua receita global proveniente de contratos públicos, já teve mais de US$ 219 milhões em contratos encerrados, com alegações de que as entregas não justificavam os gastos. 


Esse é um movimento estratégico com o potencial de remodelar profundamente o setor de consultoria no contexto governamental e, por extensão, suas relações com o setor privado,  onde a demanda por serviços de transformação digital, inovação e sustentabilidade continua crescendo. Logo, empresas que antes tinham contratos de longa duração agora precisarão ajustar suas ofertas, reduzir gastos, adotar novas tecnologias e buscar uma relevância renovada para continuar sendo competitivas em um mercado em transformação.



O futuro do setor: tendências na consultoria


Com todas essas mudanças, é possível que o mercado das grandes empresas de consultoria se torne cada vez menos ligado ao capital público, como alternativa, as consultorias terão que se alinhar mais rigidamente às diretrizes governamentais, adaptando suas operações para manter contratos com o setor público, ao mesmo tempo que enfrentam pressões para inovar com tecnologias como IA e automação para justificar o valor de seus serviços. A redução do foco em programas de DEI5, a mudança nas práticas internas e a revisão de contratos bilionários sugerem uma transformação em direção a uma maior eficiência operacional e possivelmente reorientando as consultorias para mercados privados e internacionais, que não foram diretamente afetados por essas mudanças governamentais.


Além de poder forçar uma reavaliação das suas ofertas e modelos de negócio, o foco em modelos de precificação baseados em valor, em que o preço do serviço é definido com base no impacto ou no benefício gerado ao cliente, e não apenas nas horas trabalhadas. Além da criação de soluções em ESG6 reflete uma mudança de paradigma, onde a entrega de valor tangível se torna o centro das operações. Para sobreviver e prosperar, as consultorias precisarão não apenas adotar novas tecnologias, mas também adotar uma postura mais estratégica e alinhada com as necessidades de um mercado privado e global cada vez mais dinâmico e exigente.


Glossário


  1. CAGR - Taxa de crescimento anual composta

  2. ERP - Enterprise Resource Planning, é um sistema de software integrado que permite a gestão de processos de negócios dentro de uma organização

  3. Accountability - Princípio de responsabilização que exige que gestores e instituições prestem contas de suas ações e decisões.

  4. GSA - Administração de Serviços Gerais

  5. DEI - Diversidade, Equidade e Inclusão

  6. ESG - Environmental, Social and Governance (Ambiental, Social e Governança)



    BCC Research. “Global AI Consulting Services Market.” Bccresearch.com, 5 July 2023, www.bccresearch.com/market-research/information-technology/ai-consulting-services-market.html?utm_source=PRIFT283A&utm_medium=referral&utm_campaign=prnewswire. Accessed 20 Apr. 2025.

    “Consultorias Bilionárias Na Mira: Como O Governo Trump Está Mudando as Regras Do Jogo.” Vennx.com.br, 2025, vennx.com.br/2025/03/11/consultorias-bilionarias-na-mira-como-o-governo-trump-esta-mudando-as-regras-do-jogo. Accessed 20 Apr. 2025.

    “Europe’s Management Consulting Industry Worth $45 Billion.” Www.consultancy.eu, 23 Mar. 2020, www.consultancy.eu/news/3988/europes-management-consulting-industry-worth-45-billion.

    para, Colaboração. “Contrapeso a Trump Virá, Mas Destruição Até Lá Será Grande, Diz Consultoria.” UOL, 11 Apr. 2025, economia.uol.com.br/noticias/redacao/2025/04/11/trump-testa-poderes-do-executivo-de-maneira-inedita-diz-christopher-garman.htm. Accessed 20 Apr. 2025.

    “Serviços E Consultoria de Inteligência Artificial (IA) | IBM.” Ibm.com, 2024, www.ibm.com/br-pt/consulting/artificial-intelligence?utm_content=SRCWW&p1=Search&p4=43700081729952324&p5=e&p9=58700008821444964&gad_source=1&gclid=Cj0KCQjwh_i_BhCzARIsANimeoElEubfqD_hF5q-vomd74yUuo0vfhAmEAVUKJuZC5ivFnG_657U5i0aAmTVEALw_wcB&gclsrc=aw.ds.

    “Fact Sheet: President Donald J. Trump Eliminates Waste and Saves Taxpayer Dollars by Consolidating Procurement.” The White House, 20 Mar. 2025, www.whitehouse.gov/fact-sheets/2025/03/fact-sheet-president-donald-j-trump-eliminates-waste-and-saves-taxpayer-dollars-by-consolidating-procurement/?utm_source=chatgpt.com. Accessed 20 Apr. 2025.

    https://www.usaspending.gov/recipient




 
 
 

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