Recentemente, o mundo se abalou com a notícia da morte da rainha Elizabeth II. Multidões de pessoas e diversos chefes de Estado se reuniram em Londres para prestar as suas últimas homenagens à segunda monarca mais longeva de todos os tempos. A rainha do Reino Unido e dos Reinos da Comunidade de Nações (Commonwealth) assumiu o trono em 1952 e permaneceu até a sua morte em 2022, totalizando 70 anos de exercício do poder, o que a deixa atrás apenas de Luís XIV, governante da França por 72 anos (1643-1715).
Ao longo dos anos, Elizabeth II construiu uma relação muito forte e estável com a população britânica, tornando-se um símbolo da história da nação. Nesse contexto, a sua morte pode representar o fim dessa estabilidade, gerando questionamentos acerca do futuro da monarquia do Reino Unido, tradicional regime político que perdura desde meados do século IX. Diante desse cenário, o novo rei Charles III, sem o mesmo reconhecimento popular de que gozava a sua mãe, assume o trono com um grande desafio: manter vivo o papel da família real na atualidade.
As funções reais na contemporaneidade
Inicialmente, é importante fazer uma análise da área de influência da monarquia britânica no mundo, que vai muito além dos quatro países que compõem o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte), incluindo também países da Commonwealth.
A Comunidade das Nações (Commonwealth) é uma organização governamental internacional liderada pelo monarca britânico e composta por 56 países, que cooperam dentro de um quadro de valores e objetivos em comum, como a democracia, o livre-comércio e o multilateralismo¹. Além disso, todas as nações que a compõem, exceto Gabão, Moçambique, Ruanda e Togo, faziam parte do Império Britânico. Nesse sentido, devido a fatores históricos e culturais semelhantes, 14 países desta organização, como o Canadá e a Austrália, somados aos quatro do Reino Unido, ainda consideram o monarca britânico como Chefe de Estado. Os outros países da Comunidade das Nações são repúblicas ou têm um outro monarca como líder.
Influência da monarquia britânica no mundo
Ademais, faz-se necessária a compreensão de que o regime político britânico vigente consiste em uma monarquia constitucional, na qual, apesar do monarca ser o Chefe de Estado, os seus poderes são limitados pela Constituição. Dessa forma, algumas ações, como a promulgação² de leis e a realização de julgamentos, não são cabíveis ao rei ou rainha. Dentre as suas funções mais expressivas, pode-se destacar a possibilidade de vetar leis, abrir ou dissolver o Parlamento, assim como comandar as Forças Armadas.
Entretanto, é fundamental ressaltar que, na prática, o cargo monárquico e dos membros da realeza são meramente ilustrativos na atualidade, seja no Reino Unido ou nos outros 14 países que também fazem parte desse regime. Portanto, apesar de ter essas atribuições, a monarquia não costuma interferir em assuntos políticos, buscando exercer uma posição neutra, de modo que, desde 1708, não houve nenhuma recusa do soberano de seguir as recomendações do Parlamento. Tal fato se deve à imagem do monarca nos últimos séculos estar atrelada à manutenção da estabilidade na nação, com enfoque em um caráter simbólico, afastado de disputas políticas. Dessa forma, as incumbências da monarquia nos dias de hoje estão mais associadas a aspectos culturais ou sociais, como participações em eventos comemorativos e associações com instituições de caridade.
Por que a monarquia britânica permanece presente na atualidade?
Levando-se em conta que os membros da realeza não atuam de forma categórica em decisões políticas, econômicas ou militares, o que explica a persistência desse sistema nos dias de hoje?
A manutenção da monarquia britânica na sociedade contemporânea pode ser explicada, de acordo com historiadores e especialistas no tema, pelo forte caráter identitário que ela carrega, uma vez que é um reflexo vivo da história e da tradição do Reino Unido. Essa popularidade também se sustenta pela visibilidade mundial em relação ao legado político britânico, muito mais amplificada do que em qualquer outra nação com o regime monárquico, como a Espanha e o Japão.
Ademais, a constante adaptação aos novos tempos é um importante fator a ser considerado. Por exemplo, a participação da rainha Elizabeth II em uma cena com o icônico James Bond, um agente secreto britânico e fictício dos cinemas, na abertura dos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres, fortaleceu a relação da monarca com a população.
Outro exemplo a ser citado, em uma época mais longínqua, refere-se à troca do sobrenome da família em 1917, que foi mudado para Windsor após constantes críticas por parte da população pelo fato dos antigos sobrenomes, Saxe-Coburg e Gotha, estarem associados à realeza alemã, em um contexto em que o Reino Unido e a Alemanha estavam em lados opostos durante a Primeira Guerra Mundial.
Por fim, a transmissão de eventos como os casamentos reais, que se deu início com o casamento de Elizabeth e do falecido príncipe Philip, também se mostra uma forma de se adequar às novas tecnologias, além de garantir uma aproximação com o público. Até então, os casamentos eram cerimônias privadas sem a participação da população e, com essa nova modalidade de participação adquirida, mais pessoas passaram a acompanhar de perto esses eventos, criando um laço com essa instituição.
Os custos e os ganhos da família real britânica
Dentre os principais argumentos dos críticos à monarquia, estão as despesas necessárias para sustentá-la. A família real é custeada por meio de uma mistura de capital público e privado - além de patrimônios líquidos que incluem riqueza herdada e um portfólio imobiliário significativo.
Uma parte considerável dos gastos dos membros da realeza são pagos por meio do Sovereign Grant, rendimento dado pelo governo, resultante dos lucros gerados por uma reunião de propriedades e fazendas que estão no nome da Coroa britânica (Crown Estate³). Dessa forma, grande parcela da arrecadação vai para os cofres públicos, mas uma fatia de até 25% é depositada nas contas da família real anualmente para que possam exercer as suas atividades reais.
De acordo com a Statista, o valor arrecadado pela monarquia em função do Sovereign Grant em 2021 foi de £86,3 milhões, e esse valor vem aumentando ao longo dos anos. Vale ressaltar que o aumento exacerbado em 2017 se deve ao fato da porcentagem do faturamento ter aumentado de 15% para 25% a partir desse ano, visando ao financiamento de uma reforma do Palácio de Buckingham, que vai durar até 2027.
Passando para uma análise da receita gerada pela realeza, no que se refere ao turismo, milhões de turistas viajam para o Reino Unido todos os anos para visitar marcos que fazem parte da história da família real. Esse setor é fortemente impulsionado pelas tradições da Coroa, como visitas ao Castelo de Windsor e ao Palácio de Buckingham, ambos residências oficiais da família real.
Outra fonte de receita gerada para a economia do Reino Unido que vale ser citada é a transmissão de eventos reais, como casamentos, jubileus ou até mesmo funerais, cujos direitos são vendidos a preços elevados, tendo em vista a alta demanda global para assistir a esses acontecimentos. Ademais, a venda de produtos associados à monarquia, como livros, roupas e souvenirs também se mostra uma outra maneira eficaz de arrecadação de capital.
Analisando de forma geral, o custo médio anual para a manutenção real gira em torno de £500 milhões, enquanto a média do retorno gerado para a economia da nação é de £2,5 bilhões, de acordo com a Brand Finance, consultoria que realiza a estimativa de valores de marcas. Sendo assim, é nítido que os ganhos oriundos da popularidade da monarquia servem como um outro fator para a sua permanência na atualidade.
Tomando como exemplo o casamento de Harry e Meghan, Duque e Duquesa de Sussex, a Brand Finance calculou que o evento gerou £1 bilhão para a economia britânica em 2018, incluindo £300 milhões em viagens e acomodações gastas por turistas estrangeiros e £50 milhões gastos em mercadorias. Os custos para a realização da comemoração, associados a garantia de uma segurança reforçada, jantares requintados e uma série de outras despesas, foram de £40 milhões, segundo o site de casamento britânico Bridebook, os quais configuram-se como pouco relevantes perto da receita gerada.
O futuro da monarquia britânica
A princípio, tudo indica que a monarquia tende a permanecer viva a longo prazo, exercendo grande influência no mundo. Foram muitos os desafios enfrentados pelo Reino Unido durante a sua história, como a Segunda Guerra Mundial, a descolonização dos territórios britânicos na África e na Ásia e, mais recentemente, o Brexit⁴ e, mesmo assim, o sistema conseguiu se manter de pé. Portanto, a morte da rainha Elizabeth não aparenta ser tão importante para uma mudança significativa nesse regime.
Entretanto, apesar das boas perspectivas, alguns aspectos devem ser levados em consideração, como a baixa taxa de aceitação da monarquia por parte da população, especialmente do público mais jovem. De acordo com uma pesquisa conduzida em maio de 2022 pela YouGov, empresa britânica de pesquisa de mercado, contando com a participação de 1780 cidadãos do Reino Unido, há uma tendência de redução na aceitação da monarquia conforme a idade das pessoas reduz. Assim, menos de 30% da população entre 18 e 24 anos considera a monarquia um bom sistema político, cuja avaliação positiva chega a quase 80% para a população acima de 65 anos.
Tal fator pode estar vinculado a uma crescente mudança de mentalidade da população jovem no mundo como um todo, que vem cada vez mais se desprendendo de questões associadas à tradição, em prol da defesa de grupos marginalizados. No caso britânico, a concentração excessiva de privilégios nas mãos de um núcleo familiar, em detrimento de uma parcela da população que sofre com a pobreza, pode ser considerada uma razão para a perda do apoio nesse segmento.
Além disso, outra questão a ser levada em consideração é a imagem de Charles III aos olhos dos cidadãos britânicos. Ao contrário de sua falecida mãe, o monarca divide as opiniões do povo, uma vez que apenas 44% afirmam gostar do atual rei, de acordo com a YouGov.
Essa baixa aceitação está fortemente atrelada às crises conjugais com a falecida princesa Diana, que detinha uma alta identificação do público, em função do seu carisma e da sua participação constante em projetos sociais. Somado a esse fator, a baixa popularidade de Camilla, a atual rainha consorte, também compromete a visão sobre o monarca, tendo em vista que o atual casal já vinha se relacionando enquanto Charles ainda era casado com a Lady Di.
Com isso, esses desafios para a prosperidade da monarquia podem ser mitigados por meio de práticas bem vistas para a população, como a pauta da mudança do clima, uma das favoritas de Charles III, e que pode ajudá-lo a se colocar como um monarca atrelado a um propósito nobre para a humanidade. Essa temática se mostra relevante pelos britânicos de forma geral, uma vez que 75% dos cidadãos se mostram preocupados com as pautas climáticas, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas Britânico.
Além disso, a proximidade entre o rei e seu sucessor direto, o príncipe William, deve ser um dos grandes trunfos de seu reinado, em função da boa imagem que ele, em conjunto com a sua esposa, a princesa Catherine, e os seus filhos, detêm. De acordo com a coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), Fernanda Magnotta, o atual herdeiro do trono britânico, o príncipe William, mais popular e jovem, é a figura da família real com capacidade de renovar a monarquia, podendo garantir a prosperidade desse regime a longo prazo.
Glossário:
1. Multilateralismo: colaboração entre vários países com um objetivo em comum.
2. Promulgação: refere-se ao ato de oficialização de uma lei, tornando-a de conhecimento público, de modo que entre em vigor.
3. Crown Estate: conjunto de terras e propriedades no Reino Unido pertencentes à Coroa britânica, no qual parte dos lucros gerados são destinados à família real.
4. Brexit: nome pelo qual ficou conhecida a saída do Reino Unido da União Europeia, processo que se deu no início de 2020.
Referências:
BAZI, Daniela. Por que a monarquia britânica sobrevive até hoje?: Mesmo com o passar dos anos, os Windsor continuam sendo adorados por inúmeras pessoas ao redor do mundo. [S. l.], 19 mar. 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/por-que-monarquia-britanica-sobrevive-ate-hoje.phtml. Acesso em: 19 set. 2022.
COELHO, Penélope. Qual o papel da família real britânica nos dias atuais?: Em entrevista exclusiva ao site Aventuras na História, o professor Elion Campos, doutorando em história social e professor nos cursos de História da faculdade Estácio, falou sobre a função da monarquia atualmente. [S. l.], 17 abr. 2022. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/qual-o-papel-da-familia-real-britanica-nos-dias-atuais.phtml. Acesso em: 23 set. 2022.
EDGINGTON, Tom. Royal finances: Where does the Queen get her money?. [S. l.], 30 jun. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/explainers-57559653. Acesso em: 22 set. 2022.
GALÃO, Fábio. Monarquia em baixa entre os jovens, unidade nacional ameaçada: os primeiros desafios de Charles III. [S. l.], 8 set. 2022. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/monarquia-em-baixa-entre-os-jovens-unidade-nacional-ameacada-os-primeiros-desafios-de-charles-iii/. Acesso em: 20 set. 2022.
GRYSINSKI, Vilma. A monarquia britânica tem futuro? A maioria dos fatores joga contra: Charles não é muito popular, as correntes históricas não favorecem e o valor de uma instituição milenar pode ser desgastado rapidamente Leia mais em: https://veja.abril.com.br/coluna/mundialista/a-monarquia-britanica-tem-futuro-a-maioria-dos-fatores-joga-contra/. [S. l.], 9 set. 2022. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/mundialista/a-monarquia-britanica-tem-futuro-a-maioria-dos-fatores-joga-contra/. Acesso em: 20 set. 2022.
LORD, Craig. U.K. royal family pumps billions into the economy. The queen’s death may change that. [S. l.], 12 set. 2022. Disponível em: https://globalnews.ca/news/9123360/queen-elizabeth-death-economic-impact-royal-family/. Acesso em: 20 set. 2022.
SERHAN, Yasmeen. What the British Monarchy Actually Does—And How Hard It Would Be To Abolish It. [S. l.], 15 set. 2022. Disponível em: https://time.com/6213624/what-does-british-monarchy-do/. Acesso em: 21 set. 2022.
SERRANO, Layane. Quais são as funções e desafios de Charles III, novo rei britânico: Elizabeth II, chefe de Estado do Reino Unido e de mais 14 países, morreu aos 96 anos nesta quarta-feira (8), na Escócia. [S. l.], 10 set. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/quais-sao-as-funcoes-e-desafios-de-charles-iii-novo-rei-britanico/. Acesso em: 20 set. 2022.
SMITH, Matthew. Britain may look united in grief – but polling shows a growing generational divide. [S. l.], 16 set. 2022. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2022/sep/16/britain-grief-polling-figures-monarchy-popularity. Acesso em: 20 set. 2022.
Comments