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Do hooliganismo à glória: o Turnaround da Premier League


Contratos milionários. Jogadores de ponta. Audiência internacional. Esses são alguns dos adjetivos que, atualmente, acompanham as manchetes dos jornais ao se tratar do Campeonato Inglês. Contudo, nem sempre foi assim. Antes da fase moderna, iniciada em 1992, a competição era associada ao futebol mal jogado e, principalmente, à violência nos estádios protagonizada pelos hooligans¹. Portanto, fica a questão: como esse torneio deixou de ser conhecido pela violência, desinteresse e baixa qualidade, tornando-se a principal liga de futebol do mundo?


O início de tudo


Talvez seja inimaginável de se pensar, mas a competição nacional mais relevante do mundo teve a sua origem na presença dos hooligans nos estádios, a qual tornava o espetáculo perigoso e pouco atrativo. Assim, os ingleses perceberam que o sistema e as práticas nas quais o campeonato se sustentava estavam desgastadas, tornando urgente não apenas uma reforma, mas uma mudança completa de paradigma na organização. Com isso, criaram-se as condições propícias de mudança, por meio da união entre clubes com o objetivo da melhora do campeonato como um todo.


  • Tragédia de Heysel


Durante a década de 80, o futebol na Inglaterra passava por um momento de crise. Nesse sentido, as frequentes brigas nos estádios do país eram reflexo de uma nação em decadência, incapaz de resolver as suas questões econômicas e sociais, agravadas pela alta inflação, a qual repercutia nas urnas, passeatas e também nas arquibancadas. Portanto, grupos de torcedores e jovens e insatisfeitos, os hooligans, protagonizavam enormes confusões nos jogos, transformando um momento de lazer para as pessoas em verdadeiras lutas.


A situação era tão delicada, que, em 1985, a final da Copa dos Campeões (atual Champions League), envolvendo Juventus e Liverpool, resultou em um desfecho trágico: 39 mortes e 600 feridos. Diante desse cenário desafiador, as autoridades da UEFA (Federação Europeia de Futebol), em consenso com o governo inglês, aplicaram severas punições aos clubes, proibindo-os de disputar qualquer competição continental por um período de 5 anos.


Contudo, apesar de incisivas, as punições não surtiram efeito. Com o impedimento da participação dos clubes em torneios internacionais, a violência apenas ficou represada na terra da rainha, mantendo-se frequente no dia a dia do futebol no país.


  • A gota d’água: Desastre de Hillsborough


No dia 19 de abril de 1989, o futebol viveu um dos seus capítulos mais tristes. O que era para ser um dia de festa na semifinal da Taça da Inglaterra, disputada entre Liverpool e Nottingham Forest, se tornou uma tragédia. Nesse episódio, após uma invasão generalizada, o estádio Hillsborough passou por um processo de superlotação, resultando em esmagamentos de pessoas nas grades que separavam o campo da arquibancada. No total, foram 95 mortos e 766 feridos, um número alarmante que trazia uma certeza: o sistema inglês de futebol como um todo precisava ser reformulado.


Desse modo, estava claro que as políticas de punições adotadas inicialmente não foram eficazes, restando às autoridades britânicas, em parceria com os principais clubes do país, iniciar um profundo processo de replanejamento do futebol. Dessa forma, foram desenhadas estratégias, desde a segurança pública no combate ao hooliganismo, até planos de modernização dos estádios.


  • O surgimento da Premier League


Com isso, a partir da união entre os clubes, em parceria com as autoridades públicas e líderes da Federação Inglesa de Futebol, foi criada, em 1992, a Premier League. Nesse sentido, o novo torneio buscava trazer consigo a resolução para velhos problemas, dentre os quais se destacavam a violência e a pouca atratividade para o público estrangeiro, devido ao baixo nível técnico dos jogos.


Em relação à segurança, com base em relatórios fornecidos pela polícia britânica, a recém criada liga padronizou os estádios, abolindo os alambrados² e as gerais³. Além disso, em paralelo ao abandono das más práticas de engenharia das arenas, passou-se a fazer uso cada vez mais frequente da tecnologia proporcionada pelas câmeras de vigilância, as quais identificavam os arruaceiros, alertando os órgãos públicos para que agissem preventivamente. Portanto, todas as medidas tornavam os locais de jogo mais protegidos e, ao mesmo tempo, impediam a impunidade dos infratores.


Já no âmbito esportivo, com o intuito de elevar o nível técnico da competição, a Premier League adotou uma estratégia de negociação centralizada dos direitos de transmissão. Nesse sentido, representando os 20 clubes, a liga passou a negociar os contratos de todo o torneio com as emissoras interessadas no produto. Tudo isso, além de unir as equipes, ainda confere maior poder de barganha para a formulação de um acordo, afinal, não é possível negociar apenas com um clube, é necessário atender aos interesses de todos. Portanto, essa política permitiu que, a longo prazo, fossem negociados contratos ainda mais vantajosos, observados na evolução histórica dos valores pagos pelas emissoras com relação ao direito de transmissão.


Em suma, a fórmula de campeonato de pontos corridos, aliada aos novos acordos, significava para os clubes maior capacidade de investimento, a qual se traduziu em jogos de nível técnico mais alto. Isso, por sua vez, aumentava a atratividade do campeonato, criando um ciclo virtuoso de aumento da verba de transmissão e melhora do desempenho técnico no esporte.



Uma Liga de Recordes


  • Alcance das transmissões


A Premier League é a liga esportiva mais assistida do mundo, com jogos registrando uma média de impressionantes 683 milhões de telespectadores espalhados por 191 países em 2022. Todos esses números conferem ao Campeonato Inglês o posto de competição esportiva de clubes mais influente em nível mundial.



Dessa forma, a partir das grandes audiências, os pagamentos dos direitos televisivos são realizados de uma maneira mais democrática, capaz de favorecer os clubes de menor expressão. Para isso, a liga adota um inovador esquema de divisão dos direitos de transmissão, no qual 50% da verba é repartida igualmente, 25% distribuído em função da quantidade de jogos televisionados e os outros 25% destinados às equipes de melhor desempenho esportivo.


Como resultado, mesmo as organizações de menor expressão e de pior desempenho no torneio são bem remuneradas. Trazendo para números, na temporada 2021/22, o tradicional e campeão Manchester City arrematou 153,1 milhões de libras, enquanto o pequeno e último colocado Norwich, faturou 100,6 milhões de libras.


Em vista disso, embora ainda haja uma diferença na divisão, ela é significativamente inferior a dos torneios concorrentes, tornando a competição mais acirrada e, consequentemente, mais atrativa e valorizada. A título de comparação, no Campeonato Brasileiro de 2022, o maior pagamento pelo televisionamento do pay-per-view dos jogos foi feito ao Flamengo, totalizando 160 milhões de reais, enquanto o rebaixado Juventude arrecadou apenas 400 mil reais. Dessa forma, torna-se inegável que as regras de repartição de verbas favorecem a competitividade, afinal, no Reino Unido, o menor valor é apenas 34,6% inferior ao do primeiro, ao passo que, no Brasil, a diferença atinge abissais 99,75%.


  • Clubes mais valiosos do mundo


Influenciados pelos volumosos pagamentos dos direitos televisivos e premiações, os clubes ingleses figuram entre os mais valiosos do mundo. No total, dentre as 10 equipes de futebol detentoras dos maiores valores de mercado, 5 pertencem à Premier League. Tudo isso revela a capacidade da liga de gerar grandes caixas para os clubes, em paralelo ao grande engajamento com a torcida, proporcionando elevados valores de mercado para as equipes.



  • Casa cheia


Durante a temporada 2021/22, a Premier League retomou a liderança na média de público, atingindo impressionantes 39.989 torcedores nos estádios, sendo a terceira colocada no ranking mundial envolvendo todos os torneios nacionais. Dessa forma, a competição fica atrás apenas do College Football e da NFL, ambas relacionadas ao futebol americano. Contudo, embora o Campeonato Inglês não seja o líder em termos nominais, ela certamente se destaca no quesito taxa de ocupação, com inigualáveis 97,7% de presença das arenas.



Nessa linha, esses números refletem uma série de medidas bem feitas de fidelização dos torcedores. Como efeito, o Campeonato Inglês apresentou, ao longo da temporada de 2021/22, um público 40% superior ao segundo colocado na categoria do futebol, o Campeonato Italiano, chamado Serie A.


A receita do Sucesso


Contudo, para além do sucesso, proporcionado pela atuação competente na organização da liga, muito do esplendor do Campeonato Inglês se deve ao pioneirismo na adoção do modelo de clube-empresa, inaugurado por empresários locais, ainda no início dos anos 90. Isso porque o profissionalismo, proporcionado pelo modelo empresarial, permitiu aos clubes ingleses apresentarem finanças bem organizadas e um planejamento estruturado para o médio e longo prazo.


Dessa forma, com organizações sólidas, o futebol inglês se mostrou extremamente atrativo para investidores internacionais, em especial os americanos, que buscavam novas opções de investimento ainda não saturadas. Por isso, ao longo dos primeiros anos do século XXI, registrou-se a aquisição de diversas equipes britânicas por empresários estadunidenses com experiência na gestão de franquias de basquete e beisebol. Entretanto, com a aproximação dos anos 2010, as origens dos fluxos de capital se diversificaram, passando a atrair aportes de bilionários e fundos soberanos4 de origens alternativas, como da China e do mundo árabe, embora ainda haja o predomínio dos americanos. Tudo isso faz parte de uma estratégia de sportwashing, por meio da qual países autoritários e sem compromisso com os direitos humanos buscam melhorar a sua reputação na comunidade global.



O amanhã da Premier League


O passado recente glorioso da Premier League não deixa mentir: a liga é um sucesso consolidado dentro do futebol, servindo de inspiração para mudanças ao redor do mundo. Além disso, a organização do campeonato ainda tem buscado aumentar o seu engajamento em causas sociais, como a luta contra o racismo, a homofobia e o antissemitismo, bem como no resgate da história britânica, homenagendo os soldados envolvidos na defesa do país durante a Primeira e Segunda Guerra Mundial.


Em suma, uma fórmula que conjuga um campeonato organizado, altos investimentos, competitividade esportiva e clubes bem estruturados se mostrou bem sucedida. Ademais, o engajamento da organização em relação a pautas importantes na sociedade atual apontam para que a distância em relação às outras competições só cresça. A goleada deve aumentar.


Glossário:


1- Hooligans: É o nome dado a um grupo de torcedores que promove confusões e brigas dentro dos estádios. O termo se consagrou no Reino Unido durante os anos 70 e 80, o qual se configurou como um período de grandes brigas relacionadas ao futebol.

2- Alambrados: É o nome dado às grades que separam a arquibancada do gramado.

3- Gerais: É o nome popular atribuído às arquibancadas sem cadeiras.

4- Fundos Soberanos: São fundos administrados por governos. Dessa forma, alguns países do mundo apresentam um portfólio de ativos nos quais eles investem parte das suas reservas ou superávits fiscais.


Referências:


ANDRADA, Mário. Audiência global do esporte explode no mundo digital. Disponível em << https://www.poder360.com.br/opiniao/audiencia-global-do-esporte-explode-no-mundo-digital/#:~:text=A%20premier%20League%2C%201%C2%AA%20divis%C3%A3o,pessoas%20nas%204%20grandes%20redes>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


BRANDÃO, João. 30 anos de Premier League: conheça a história de criação da liga e o caminho até o sucesso. Disponível em << https://www.lance.com.br/futebol-internacional/30-anos-de-premier-league-conheca-a-historia-de-criacao-da-liga-e-o-caminho-ate-o-sucesso.html>>. Acesso em 12 de dezembro de 2022.


CAPELO, Rodrigo. Entenda como funcionam os "clubes-empresas" em Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal. Disponível em << https://ge.globo.com/blogs/blog-do-rodrigo-capelo/post/2019/09/30/entenda-como-funcionam-os-clubes-empresas-em-alemanha-italia-inglaterra-e-portugal.ghtml>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


GOAL, Redação. Tragédia de Heysel: O que foi o massacre que mudou o futebol europeu? Disponível em << https://www.goal.com/br/not%C3%ADcias/tragedia-de-heysel-o-que-foi-o-massacre-que-mudou-o-futebol-europeu/zwv4yaehb6iv1f9v3rrfeiuwx>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


PREMIER LEAGUE BRASIL. A origem da Premier League e a revolução no futebol inglês. Disponível em << https://premierleaguebrasil.com.br/origem-da-premier-league-futebol-da-inglaterra/>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


REBELLO, Helena e IZIDRO, Marina. Tragédia de Hillsborough faz 30 anos: relembre os erros, as mudanças e a busca por justiça. Disponível em << https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-ingles/noticia/tragedia-de-hillsborough-faz-30-anos-relembre-os-erros-as-mudancas-e-a-busca-por-justica.ghtml>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


REDAÇÃO GE. Clubes da Premier League recebem R$ 14,6 bilhões em cotas de TV; veja divisão dos valores. Disponível em << https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-ingles/noticia/2022/09/21/clubes-da-premier-league-recebem-r-146-bilhoes-em-cotas-de-tv-veja-divisao-dos-valores.ghtml>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.


REDAÇÃO MÁQUINA DO TEMPO. Entenda os motivos que fazem da Premier League a liga de futebol mais popular do mundo. Disponível em << https://maquinadoesporte.com.br/futebol/entenda-os-motivos-que-fazem-da-premier-league-liga-de-futebol-mais-popular-do-mundo/>>. Acesso em 11 de dezembro de 2022.

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