Sportwashing é a junção das palavras em inglês: esporte e lavagem. O termo, criado por organizações de direitos humanos, refere-se à prática de usar o esporte para limpar uma reputação, seja de uma pessoa ou até de um país mal visto pela sociedade. Portanto, é fazer uso do esporte para esconder ações que pessoas imponentes, como dirigentes, presidentes ou qualquer um que vise a se beneficiar com a manobra, não queiram que o resto do mundo destine atenção, criando uma falsa imagem positiva, exercendo o soft power¹.
Em junho de 2015, a expressão ganhou popularidade na imprensa europeia quando Baku, capital do Azerbaijão, sediou a edição inaugural dos Jogos Europeus. Com o evento, o governo almejava revelar uma nova face do país, a de um Estado moderno, longe da imagem autoritária e dos flagrantes recorrentes de desigualdades e desrespeito, além do conflito territorial com a Armênia. Para isso, em 2010, o governo do Azerbaijão passou a apostar no patrocínio de grandes times do futebol europeu, como o espanhol Atlético de Madrid, e na promoção de eventos esportivos no país, como a Fórmula 1 e a final da Europa League.
O sportwashing nos tempos antigos
Embora o conceito tenha passado a ser mais conhecido internacionalmente apenas em 2018, graças à Anistia Internacional², iniciativas de limpeza de imagem por meio dos esportes não são novidade. Nessa perspectiva, em 1936, nas Olimpíadas de Berlim, o evento serviu como propaganda do regime nazista de Adolf Hitler e da sua tese de superioridade da “raça ariana”, sendo os últimos jogos antes da 2º Guerra Mundial. Apesar do site oficial das Olimpíadas não mencionar o acontecimento, foi Hitler quem discursou na cerimônia de abertura do evento, e a Alemanha encerrou a competição na liderança isolada do quadro de medalhas. Assim, ele teve a oportunidade perfeita de mudar a maneira como o führer e o seu regime eram vistos pelo mundo.
Já em 1978, na Copa do Mundo sediada na Argentina, o evento serviu de apoio à Junta Militar que comandava o país desde 1976. Nesse cenário, a competição foi um meio de angariar apoio da população e esconder as constantes violações de direitos humanos cometidas pela ditadura argentina, como torturas e assassinatos.
Portanto, é evidente que o sportwashing não é uma criação do século XXI, então, o que fez ele se popularizar recentemente? A fim de utilizarem o esporte para exercer o soft power, alguns países concentraram esforços no futebol europeu, onde estão reunidos os clubes de futebol mais ricos e relevantes do planeta. Para isso, novos e poderosos personagens, financeiramente falando, entraram em cena: a Arábia Saudita, o Catar e os Emirados Árabes, regiões nas quais predominam governos autocráticos e teocráticos, que limitam a liberdade de expressão e a participação popular nas decisões políticas, além da violação dos direitos humanos. No entanto, a entrada no contexto esportivo europeu só é possível pelas enormes reservas de petróleo e gás natural que possuem em seu subsolo.
Alguns casos recentes
Nos últimos anos, discussões acerca do tema estão surgindo, principalmente, devido a compras recentes no cenário do futebol. Gigantes como Paris Saint-Germain (PSG), Manchester City e Newcastle são exemplos de sucesso no esporte, ao passo em que são evidências do mais puro sportwashing.
Newcastle
Em 2021, a Premier League, maior liga de futebol do planeta, anunciou a compra do Newcastle pelo fundo público de investimentos da Arábia Saudita (PIF) por 300 milhões de libras (R$2,2 bilhões), mas o projeto do governo de investimento - exclusivo em esportes - passa dos 600 milhões de dólares. Seu novo presidente, Yasir Al-Rumayyan, foi indicado por Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro saudita e alvo de diversas acusações por violações aos direitos humanos, convivendo com uma má reputação principalmente nos países europeus. Assim, investindo no futebol, bin Salman estaria mascarando os problemas humanitários que acontecem na Arábia Saudita, como a posição extremamente desvantajosa das mulheres dentro da sociedade saudita, a discriminação religiosa e a falta de liberdade política. Com isso, a promoção do evento desviaria a atenção de acusações das quais o governo é alvo.
Na tentativa de frear essa imagem, o príncipe, em 2016, apresentou a Visão 2030, plano com o objetivo de reduzir a dependência da Arábia Saudita no petróleo, diversificar a economia e desenvolver setores como saúde, infraestrutura e turismo, de forma a sobreviver na Nova Ordem Internacional⁴. No entanto, primeiro é preciso mudar a imagem de país rígido e conservador que os acompanha. Assim, com diversos problemas de violação, censura e execuções, o príncipe achou no esporte uma forma de desviar as atenções negativas atribuídas à Arábia Saudita: sediar grandes eventos e investir no esporte, em um claro exemplo de sportwashing.
Em termos econômicos, o novo dono do clube não promete render nada parecido com os retornos da exploração do petróleo, que fundamentam a economia do país. Porém, dinheiro certamente não é o problema para o fundo que detém $434 bilhões. Por consequência, confere ainda mais legitimidade a governos autoritários, famosos pela fortuna e pelas violações de direitos humanos. Longe da realidade saudita, cerca de 94% dos torcedores do Newcastle aprovam a compra do time pelo PIF.
Manchester City
O Manchester City, desde 2008, tem como proprietário o integrante da família real dos Emirados Árabes, Mansour Bin Zayed Al Nahyan, que comprou o clube por 210 milhões de libras (R$1,227 bilhão). Com parte do dinheiro do petróleo árabe sendo investido na modernização do clube e em jogadores de alto nível, o City iniciou sua busca por títulos. Apesar de possuir uma torcida fiel, até 2008, eram apenas 2 títulos da Premier League e 4 da Copa da Inglaterra. Assim, na temporada 2011/2012 encerrou-se um jejum de 44 anos, e o clube foi campeão mais 4 vezes.
Desde 2016, o emirado já gastou 1 bilhão de euros só em transferências. Antes da pandemia, o time foi alvo de sportwashing ao sofrer uma punição da UEFA de fair play financeiro⁵ por ter patrimônio não descritos e contratos ocultos. A resolução da entidade constatou que a medida foi incorreta e visava beneficiar o clube ou o dono dos Cityzens, a estatal Abu Dhabi United Group. A questão principal por trás é que o Sheik Mansour é irmão do atual presidente dos Emirados Árabes Unidos, uma monarquia absolutista.
Portanto, os investimentos no futebol inglês seriam uma forma de promoção governamental e omissão acerca da realidade do país. Nesse sentido, 90% da população do país é composta por imigrantes, que recebem salários baixíssimos, vivendo em condições de pobreza. Além disso, os investimentos de Abu Dhabi no futebol vão além do clube inglês. O grupo é responsável por um conglomerado, o City Football Club, plataforma detentora de parte das ações de clubes ao redor do mundo, como New York City (EUA), Girona (ESP) e Melbourne City (AUS), é apenas uma manobra do governo de Abu Dhabi para expandir sua imagem e influência - e deu certo. Ademais, clubes com 100% das ações pertencentes ao grupo, possuem o mesmo patrocinador master, a Etihad Airways, uma das duas companhias aéreas estatais dos Emirados Árabes. A compatriota Fly Emirates também está entre a elite do futebol europeu, tendo como patrocinado um dos clubes de mais sucesso no mundo, o Real Madrid, desde 2013. Dessa forma, o gráfico abaixo demonstra o ranking de turismo e competitividade do país, que vêm subindo com os anos, assim como de outros países.
Paris Saint-Germain
O estrelado elenco, capaz de reunir Messi, Neymar e Mbappé no mesmo time, não é à toa. O sistema financeiro do clube é sustentado por Nasser Al-Khelaifi, presidente de um fundo ligado ao governo do Catar (QSI) que, em 2011, comprou 70% das ações do PSG por 50 milhões de euros (R$316 milhões). Na prática, o dono passou a ser o líder supremo do Catar, o emir³ Tamim bin Hamad Al Thani e os investimentos, antes tímidos, teriam origem nas exportações de petróleo.
Até 2013, o time francês havia conquistado apenas 2 títulos da Ligue 1 (1ª divisão francesa de futebol). Em menos de 2 anos após a compra, o PSG ganhou o seu 3º título do campeonato francês e, até 2022, já foram 6 títulos em 8 temporadas.
Embora o emir tenha autorizado a realização de eleições para dois terços da assembleia consultiva do país, o governo do Catar continua sendo uma monarquia absolutista. Assim, o esforço para ligar a imagem do país a um dos melhores clubes do esporte mais popular do planeta, é visto como estratégia de marketing. O pequeno e rico país do Golfo investiu bilhões em clubes como é o caso da compra e de injeções de dinheiro no time francês, bancando contratações e transferências de valor recorde como a do Neymar por 222 milhões de euros (1,2 bilhão de reais).
Dessa forma, como consequência, o PSG também aumentou significativamente sua popularidade, que foi trazido tanto em números nas redes sociais, quanto em retorno financeiro para o clube (seja na venda de camisas, idas aos jogos ou visitas guiadas ao Parc des Princes).
FUTEBOL DE ELITE NÃO DÁ LUCRO
A Premier League, liga mais rica do mundo, onde grande parte dos clubes são empresas, não dá lucro. O gráfico do déficit acumulado dos clubes do campeonato desde 2009 mostra que o prejuízo já passou dos 4 bilhões de libras (mais de 30 bilhões de reais). É o caso de clubes dominados por estados árabes como o Newcastle, Manchester City, além de muitos outros, como o Chelsea. Assim, para ter poder competitivo, os times que não são do modelo clube-empresa são compelidos a gastar o que têm e o que não têm.
No entanto, esse cenário não é um problema apenas dos clubes pequenos da liga, mas também dos grandes clubes, como Chelsea e Manchester City.
ORGANIZAÇÕES ATIVISTAS E A TENTATIVA DE IMPEDIR AS AQUISIÇÕES
Uma das principais perguntas sobre sportwashing é se as organizações de direitos humanos conseguem barrar alguém que tente utilizar a manobra. A resposta é não, mas, sempre que esse tipo de prática é identificada, as ONGs procuram os prováveis alvos para explicar a situação e sugerir que os negócios não devem ser levados a diante.
“Se o negócio [compra do Newcastle] não for efetivado por causa dos problemas de direitos humanos seria algo sem precedentes e mudaria a percepção das pessoas de que o esporte é um meio fácil e rápido de limpar a própria imagem. A Anistia nunca disse quem deve ou não deve comprar clubes. Nós chamamos a atenção das pessoas para que elas estejam cientes do que está acontecendo e estejam prontas para falar sobre isso”, disse Felix Jakens, diretor da Anistia Internacional do Reino Unido, em entrevista ao Globoesporte.com.
MUITO ALÉM DO FUTEBOL
Nesse sentido, não só os clubes são afetados, mas também as federações. As entidades que ditam as normas do jogo também estão cedendo a esse fenômeno. Um desses casos é o da UEFA com a Socar, empresa fundamental para a economia do Azerbaijão, sendo responsável por 90% das exportações do país e abastecendo metade do orçamento nacional. A estatal petrolífera tem sua marca exibida em todos os jogos internacionais da UEFA, a mesma que puniu por violações ao fair play financeiro, o Chelsea, que assim como a entidade, foi alvo de sportwashing.
No caso da Arábia Saudita, além dos direitos de transmissão, das Supercopas e da compra do Newcastle, ela busca sediar a Copa do Mundo. A aproximação de Mohammed bin Salman com Gianni Infantino, presidente da Fifa, seria um indicador do objetivo. Além das copas, com destaque para Rússia 2018 e Catar 2022, GPs de Fórmulas 1 e Olimpíadas também são usados por outras nações, a fim de melhorar sua reputação internacional.
Fórmula 1: o esporte campeão no sportwashing
O calendário da temporada 2021 teve 6 das 22 provas acontecendo em países referência no sportwashing, como a Arábia Saudita. Além disso, há a Rússia, que também pratica o fenômeno, e a Hungria, mas essa é uma corrida antiga e tradicional, apesar da remoção ser recomendada considerando a ditadura de Viktor Orbán.
A FIA, portanto, nunca se preocupou com direitos humanos ou com ditaduras. No Apartheid, por exemplo, mantinha uma etapa na África do Sul, mesmo com todos os protestos e boicotes internacionais. Não muito longe, atualmente, a instituição anunciou que pretende voltar a ter uma etapa na África, fato que não acontece desde o Grande Prêmio da África do Sul de 1993. Uma das principais favoritas? Ruanda.
No entanto, como criticá-la quando a próxima Copa do Mundo FIFA, acontecerá no Catar, um dos estados campeões em sportwashing.
COPA DO MUNDO CATAR 2022
Nos bastidores, a situação não é nada transparente. O país tem sido fortemente acusado de violar os direitos humanos, principalmente com relação aos operários envolvidos nas construções dos estádios. De acordo com a Anistia Internacional, um terço, 6.5 mil, já perdeu a vida nas obras.
A Copa do Mundo é um produto comercializado pela Fifa e, para vendê-lo, está a ideia de soft power, isto é, a nação que recebe o evento vai estar no holofote do mundo. Assim, há a possibilidade de constituir parceiros políticos e econômicos, que normalmente não se interessariam pelo país. A ênfase da Copa está no consumo do espetáculo esportivo, das marcas patrocinadoras e dos turistas. Dessa forma, o governo promove valores culturais e políticos para exercer sua influência, sem a necessidade de impor força militar, pois a relação diplomática nesses eventos é muito grande, dada a presença dos chefes de Estado nos jogos de suas seleções. O esporte esconde por debaixo do tapete muitos dos problemas e violações cometidas por diferentes países, mas isso é apenas reflexo da realidade mundial, certo?
Glossário:
Soft Power: segundo Joseph Nye Jr., é quando o Estado promove valores culturais e políticos para exercer sua influência, sem a necessidade de impor a força militar.
Anistia Internacional: organização não governamental que defende os direitos humanos com mais de 7 milhões de membros e apoiantes em todo o mundo.
Emir: título de origem árabe de natureza aristocrática, nobre, militar ou política usado nos países árabes e, sobretudo historicamente, em outros países muçulmanos.
Fair play financeiro: é um conjunto de regras estabelecidas para evitar que os clubes de futebol profissional gastem mais do que arrecadam na busca do sucesso e, ao fazê-lo, não tenham problemas financeiros que possam ameaçar a sua sobrevivência a longo prazo.
Nova Ordem Internacional: imposta por um conjunto de propostas elaboradas e expressas pela Assembleia Geral das Nações Unidas nos documentos "Declaração de Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial". A crescente importância dos problemas econômicos e seu impacto nas relações internacionais contemporâneas refletiram-se nas resoluções, adotadas em maio de 1974 pela Assembleia Geral da ONU.
Referências bibliográficas:
“Sportwashing e violação aos direitos humanos: entenda a compra do Newcastle pelo governo saudita” Disponível em <Sportwashing e violação aos direitos humanos: entenda a compra do Newcastle pelo governo saudita> Acesso em: 04/09/2022
“How repressive states and government use sports washing to remove stains on their reputation” Disponível em <How repressive states and government use sports washing to remove stains on their reputation> Acesso em: 04/09/2022
“O que é sportwashing e o que ele tem a ver com o futebol e a compra do Newcastle” Disponível em <O que é sportwashing e o que ele tem a ver com o futebol e a compra do Newcastle> Acesso em: 6/09/2022
"Sportwashing e a sua relação com a Copa do Catar” Disponível em <Sportwashing e a sua relação com a Copa do Catar> Acesso em: 06/09/2022
“Sportwashing: entenda o conceito por trás da compra do Newcastle” Disponível em <Sportwashing: entenda o conceito por trás da compra do Newcastle> Acesso em: 06/09/2022
“O sportwashing além do Oriente Médio” Disponível em <O sportwashing além do Oriente Médio> Acesso em: 06/09/2022
“Saiba o que é soft power e sportwashing e como essas práticas unem PSG e Catar na final da Champions” Disponível em <Saiba o que é soft power e sportwashing e como essas práticas unem PSG e Catar na final da Champions> Acesso em: 06/09/2022
“As armadilhas ocultas no modelo da SAF” Disponível em <As armadilhas ocultas no modelo da SAF> Acesso em: 06/09/2022
“Instrumento de poder de donos estrangeiros, Chelsea e City fazem final da Champions” Disponível em <Instrumento de poder de donos estrangeiros, Chelsea e City fazem final da Champions> Acesso em: 06/09/2022
“Aquisição do Newcastle reacendeu debate sobre sportwashing - e nós precisamos falar disso” Disponível em <Aquisição do Newcastle reacendeu debate sobre sportwashing - e nós precisamos falar disso> Acesso em: 06/09/2022
“Futebol de elite não dá lucro: o caso da Premier League” Disponível em <Futebol de elite não dá lucro: o caso da Premier League > Acesso em: 06/09/2022
“Muito além da vaga na final: por que City X PSG envolve também geopolítica no Oriente Médio” Disponível em <Muito além da vaga na final: por que City X PSG envolve também geopolítica no Oriente Médio> Acesso em: 06/09/2022
“Sportwashing: o que a compra do Newcastle ensina sobre essa palavra que ganha cada vez mais espaço no futebol” Disponível em <Sportwashing: o que a compra do Newcastle ensina sobre essa palavra que ganha cada vez mais espaço no futebol> Acesso em: 06/09/2022
“O que é sportwashing, termo ganhando espaço no futebol e levanta discussões em todo mundo” Disponível em <O que é sportwashing, termo ganhando espaço no futebol e levanta discussões em todo mundo> Acesso em: 06/09/2022
“Sportwashing: o marketing imoral” Disponível em <Sportwashing: o marketing imoral> Acesso em: 12/09/2022
“PSG no Francês: do salário de Neymar ao elenco bilionário, qual o peso do fator dinheiro no campeonato?” Disponível em <PSG no Francês: do salário de Neymar ao elenco bilionário, qual o peso do fator dinheiro no campeonato?> Acesso em: 15/09/2022
“Após chegada de Neymar redes sociais do PSG demonstram crescimento” Disponível em <Após chegada de Neymar redes sociais do PSG demonstram crescimento> Acesso em: 15/09/2022
“Em 10 anos, PSG se consolida como uma potência digital” Disponível em <Em 10 anos, PSG se consolida como uma potência digital> Acesso em: 15/09/2022
Comentários