Do Petróleo ao Futebol: O Novo Branding da Arábia Saudita
- Gustavo Coscarelli
- 29 de jun.
- 10 min de leitura

A Arábia Saudita construiu seu patrimônio histórico com base na exploração e exportação do petróleo, o que, por décadas, tornou desnecessário um investimento consistente na industrialização nacional e impulsionou sua relevância no cenário global. No entanto, com o avanço da globalização, a Arábia Saudita passou a enfrentar desafios relacionados à sua imagem internacional e à dependência econômica do petróleo, reconhecendo a necessidade de se reinventar e diversificar sua economia. Logo, um dos caminhos adotados foi o investimento intenso no esporte, especialmente no futebol, como parte de uma estratégia que remete à política do “pão e circo”, desviando através do entretenimento o foco acerca de questões estruturais relevantes, como desigualdade, censura e carência de liberdade. Portanto, seria o esporte mais popular do mundo apenas uma maneira de suavizar a imagem saudita na modernidade?
A Construção da Economia e Imagem Saudita
O Reino da Arábia Saudita, unificado em 1932, passou quase toda a sua existência isolado do cenário internacional, limitando os contatos com o mundo exterior às questões referentes ao petróleo, do qual é o segundo maior produtor (atrás dos Estados Unidos) e o maior exportador desde 1970. Atualmente, o petróleo compreende 30 a 40% do PIB real do país, sem incluir a proporção da economia que também depende da distribuição do recurso. Desse modo, evidencia-se que a economia nacional carece de diversificação, o que é um grande risco para o país devido à volatilidade dos preços do petróleo e ao exaurimento eventual das reservas, à baixa geração de empregos e aos aspectos relacionados à transição energética global. Sendo assim, a busca por reduzir a dependência do petróleo tem sido uma prioridade governamental, com diversos esforços nesse sentido.
A primeira tentativa surgiu na década de 1970, quando a Arábia Saudita lançou seus primeiros Planos Quinquenais de Desenvolvimento com o objetivo de diversificar sua economia. No contexto da crise do petróleo de 1973, o país foi favorecido pelo aumento acentuado do preço do barril após o embargo liderado pelos países árabes da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), em resposta ao apoio ocidental a Israel na Guerra do Yom Kippur. Como um dos maiores produtores, a Arábia Saudita se beneficiou com a valorização do recurso, consolidou sua liderança dentro da OPEP e passou a exercer maior influência no mercado global de energia. Por meio desse acúmulo de capital, o governo investiu pesadamente em infraestrutura, criando cidades industriais como Jubail e Yanbu, e fundando grandes empresas estatais como a SABIC (Saudi Basic Industries Corporation), voltadas para a indústria petroquímica e de base.
Apesar dos avanços significativos na modernização do país e na construção de uma base industrial, o plano não alcançou plenamente seu objetivo de diversificar a economia, pois as indústrias permaneceram atreladas ao setor petrolífero. Embora a manufatura tenha crescido de forma expressiva, de US$ 4,3 bilhões em 1975 para US$ 29,5 bilhões em 2010, os segmentos não ligados à petroquímica seguiram representando menos de 5% do PIB industrial. Assim, o setor privado seguiu frágil e altamente dependente do Estado, mantendo a economia exposta à volatilidade dos preços do petróleo. Além disso, a escassez de mão de obra qualificada levou a uma forte dependência de trabalhadores estrangeiros, que hoje compõem cerca de 40% da população ocupando funções técnicas e operacionais, o que dificultou o avanço rumo a uma economia mais autônoma e sustentável no longo prazo.
Além dos problemas econômicos, a Arábia Saudita enfrenta, há décadas, uma série de problemas sociais que impactam sua população e moldam a percepção internacional do país. Entre os principais desafios estão as restrições às liberdades individuais, incluindo severas limitações aos direitos das mulheres, como a tutela masculina para casamento e saírem de casa, que restringe a autonomia feminina. Além disso, a rigidez do sistema jurídico, baseado em interpretações conservadoras da lei islâmica, resultou em punições severas que frequentemente despertam críticas internacionais, como a execução de 81 pessoas em março de 2022. Esses fatores sociais contribuíram para uma sociedade marcada por fortes contrastes entre tradições conservadoras e as pressões por modernização e reformas.
Ao longo da história recente, a Arábia Saudita construiu uma imagem negativa no cenário mundial, frequentemente associada a violações de direitos humanos, repressão política e restrições às liberdades civis. Casos emblemáticos, como a repressão a ativistas e jornalistas, além do envolvimento do governo no sangrento conflito no vizinho Iêmen, aprofundaram críticas e condenações internacionais. Paralelamente, a posição do país em conflitos regionais, o financiamento de grupos religiosos e a falta de transparência institucional reforçaram essa percepção desfavorável. Embora esforços recentes busquem melhorar a imagem saudita por meio de reformas econômicas e sociais, os desafios históricos continuam influenciando a maneira como o mundo vê o país, gerando um debate constante entre os avanços e os retrocessos.

A Reinvenção Saudita
Após meio século, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, detentor de fato do poder em um regime explicitamente autocrático, passou a utilizar uma enxurrada de petrodólares para investir no esporte e no turismo, com o objetivo de projetar, tanto para o país quanto para o próprio príncipe, uma imagem mais equilibrada e aberta à modernidade, trata-se de uma estratégia simbólica e política para reposicionar a Arábia Saudita no cenário global. Nesse sentido, Mohammed bin Salman busca romper com a associação histórica do país ao conservadorismo religioso extremo, à repressão de liberdades civis e ao isolamento cultural por meio do investimento massivo em setores como esporte, turismo e entretenimento.
Nesse sentido, torna-se evidente o objetivo de varrer para debaixo do tapete o carregado histórico de abusos dos direitos humanos, onde a homossexualidade é crime, as mulheres são submissas aos homens por lei, a liberdade de expressão é nula e a pena de morte é aplicada com assustadora frequência. Embora continue sendo um importante player geopolítico e econômico no Golfo Pérsico, a nação é muitas vezes vista com desconfiança e apreensão devido a essas questões sensíveis, que colocam em análise sua reputação global e seu papel no cenário internacional. Portanto, o governo idealizou a Visão 2030 da Arábia Saudita, um programa nacional de reformas lançado em 2016 para transformar a economia, a sociedade e a governança do país até o ano de 2030.
O plano Visão 2030 da Arábia Saudita possui objetivos amplos e ambiciosos, envolvendo a diversificação econômica e fortalecimento do setor privado para que ele assuma uma maior parcela da economia, passando dos atuais cerca de 40% para mais de 65% do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, o plano busca incentivar o empreendedorismo e as pequenas e médias empresas, atrair investimentos estrangeiros diretos por meio de reformas legais e regulatórias, melhorar a eficiência do governo, aumentar a transparência, combater a corrupção e modernizar a administração pública. Na esfera social, ele propõe uma transformação cultural que respeita as tradições locais, mas que promove uma sociedade mais vibrante e aberta. Isso envolve melhorar a qualidade dos serviços públicos como saúde e educação, expandir o acesso a oportunidades culturais, artísticas e esportivas, além de incentivar a participação das mulheres no mercado de trabalho e na vida pública, buscando reduzir a taxa de desemprego, especialmente entre os jovens. No plano internacional, o país almeja reforçar seu papel como potência regional e global, transformando-se em um centro de investimentos, cultura e turismo.
Tendo em vista esse panorama, o esporte é considerado um meio poderoso para inspirar e unir as pessoas, além de ser uma porta de entrada para o desenvolvimento de talentos e expressão da identidade nacional, bem como, uma grande oportunidade de desenvolvimento e influência internacional. Sendo assim, o país tem investido de forma substancial na infraestrutura esportiva. O Fundo de Investimento Público (PIF), fundo soberano do país com ativos estimados em mais de US$ 700 bilhões, lidera esses movimentos, representando mais de 30% dos aportes do país em eventos de futebol, tênis, golfe, automobilismo, e-sports e esportes de combate.

Futebol como Vitrine Saudita
Inicialmente restrito a estrangeiros e elites locais, o futebol era símbolo de modernidade e prestígio. A partir da década de 1950, com melhorias sociais e infraestrutura, o esporte se popularizou entre os sauditas por ser acessível e inclusivo, tornando-se um dos principais meios de lazer no país. Na medida em que o futebol se democratizou no reino, o governo saudita passou a investir cada vez mais no esporte. Em 1956, surgiu a Associação Saudita de Futebol (SAFF), principal organização responsável pela estruturação de todas as áreas relacionadas ao futebol no país. No ano seguinte, em 1957, iniciou-se a Copa Rei da Arábia, que incluiu as melhores equipes da região em um campeonato que permaneceu sendo o único de âmbito nacional durante quase 18 anos. Ainda no século XX, a seleção nacional da Arábia Saudita fez sua primeira partida oficial na segunda edição dos Jogos Pan-Árabes em Beirute, no Líbano. Finalmente, em 1976, o governo saudita, na tentativa de fomentar o esporte nacionalmente e promover ainda mais o desenvolvimento através dele, optou por criar uma organização que fizesse com que o futebol deixasse de ser semiprofissional para se tornar totalmente profissional e, com isso, nasceu a Saudi Professional League (SPL).
Atualmente, o futebol representa 50% do conteúdo esportivo consumido no país, sendo o carro-chefe da estratégia de visibilidade global da Arábia Saudita. Esporte no qual o país possui um leque de investimentos, indo desde a aquisição de clubes de renome até a organização de competições e eventos de grande porte. Desse modo, o governo comprometeu-se com a compra de clubes de futebol em todo o mundo, a transferência de jogadores de renome para a Liga Saudita de Futebol (SPL) e ainda, um complexo de treinamento avançado e tecnológico. Segundo dados do New York Times, o PIF (Fundo de Investimento Público) pretende disponibilizar até 1 bilhão de dólares (aproximadamente 5.5 bilhões de reais) para a contratação de grandes nomes do futebol mundial, com destino aos 4 maiores clubes do país.
Nos últimos anos, por meio do PIF, o país adquiriu 80% do Newcastle United, tradicional clube da Premier League inglesa, marcando uma das movimentações mais simbólicas de sua entrada no futebol europeu. Além disso, o governo financiou contratações milionárias para clubes da Saudi Pro League, trazendo estrelas como Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Neymar Jr. e Sadio Mané, com salários exorbitantes e propostas que superaram as ofertas de grandes clubes europeus. A contratação do ídolo CR7 para o clube Al Nassr o tornou o jogador mais bem pago do mundo segundo a Forbes, recebendo um salário anual de 200 milhões de dólares. Além disso, em 2 anos de contrato, o Neymar ganhou cerca de 1,7 bilhão de reais em salários, luvas e acordos comerciais.
Nesse sentido, é evidente que o intuito do país é aumentar a visibilidade mundial sobre a liga nacional e, a partir disso, fomentar maior interesse do público e, consequentemente, atrair mais investidores para a liga como um todo. Até 2030, o governo saudita planeja expandir significativamente as receitas do setor esportivo e elevar o valor de mercado da liga, inserindo-a entre as mais relevantes do cenário global. Nesse contexto, a confirmação da Arábia Saudita como sede da Copa do Mundo da FIFA de 2034 não apenas reforça essa estratégia como também representa um marco dentro da ambição nacional de se projetar como um novo polo esportivo mundial.
A expectativa em torno do evento é elevada, considerando os impactos econômicos, sociais e políticos que uma Copa do Mundo é capaz de gerar. A realização do torneio poderá impulsionar o turismo, acelerar investimentos em infraestrutura e mobilidade, e consolidar a imagem do país como uma potência emergente no esporte. Além disso, ao sediar um evento dessa magnitude, o governo saudita busca reforçar sua narrativa de modernização e abertura ao mundo, alinhada aos objetivos do plano Visão 2030. Em contrapartida, o evento também representa um risco considerável para a imagem da Arábia Saudita. Ao atrair os olhares do mundo inteiro, o país se expõe não apenas como anfitrião esportivo, mas também como alvo de críticas relacionadas a seus desafios internos e à sua postura em temas sensíveis. Nesse contexto, a experiência recente do Catar na Copa de 2022 serve como alerta, uma vez que tiveram que lidar com questionamentos sobre a falta de liberdade de expressão, o desrespeito às minorias e a superficialidade da hospitalidade oferecida aos visitantes. Esses episódios demonstram que sediar um megaevento esportivo pode funcionar como um catalisador de críticas, especialmente quando há um descompasso entre o espetáculo apresentado e a realidade vivida por grande parte da população.

A Geopolítica do Esporte
A crescente importância do esporte na geopolítica global e a maneira como é usado por governos, empresas e indivíduos para promover interesses políticos e alcançar objetivos econômicos, muitas vezes por meio da manipulação e superficialidade das informações, originou o conceito de sport washing. Trata-se de uma prática inserida em um fenômeno mais amplo, em que o termo washing é utilizado para designar estratégias que mascaram condutas controversas por meio de discursos ou ações aparentemente positivas.
Nesse contexto, a estratégia utilizada pela Arábia Saudita desde 2016 não é uma tendência de agora, já que o uso do esporte como ferramenta para fortalecer a identidade nacional ou para desviar o foco das ações estatais é uma prática recorrente na História. O regime alemão nazista, por exemplo, usou os Jogos Olímpicos de 1936 para transparecer a toda comunidade internacional a ideia de uma Alemanha forte e determinada. Na Grécia Antiga, o esporte funcionava como propaganda e estratégia política contra os competidores espartanos. Em 1934, a Itália fascista sediou a segunda edição da Copa do Mundo da FIFA e Mussolini usou as conquistas esportivas da seleção do país , que inclusive foi campeã da edição, como meio de desafiar as percepções mundiais sobre a fragilidade italiana. Até mesmo o Brasil, em 1970, utilizou a conquista da Copa do Mundo como instrumento para abafar os ecos da repressão da ditadura militar e projetar uma imagem de progresso e estabilidade econômica diante do mundo.
Nessa perspectiva, a Arábia Saudita não investiu, nos últimos anos, mais de US$ 6 bilhões na contratação de estrelas do futebol mundial, na reestruturação da Saudi Pro League, na aquisição do clube inglês Newcastle United e na candidatura para sediar a Copa do Mundo de 2034 apenas com o intuito de promover o esporte no país. Esses aportes expressivos não representam apenas um esforço para desatrelar a economia saudita da histórica dependência do petróleo, mas também, e sobretudo, uma tentativa de desviar o foco das tensões sociais e das persistentes violações de direitos humanos, como no caso recente do brutal assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico ao governo, morto dentro do consulado de seu país em Istambul.
Além disso, é possível interpretar os investimentos esportivos como uma estratégia do regime saudita para "comprar o silêncio" de países europeus e outras potências ocidentais em relação às suas práticas autoritárias. Ao se posicionar como sede de grandes eventos esportivos e investir pesadamente em tecnologia e infraestrutura de ponta, a Arábia Saudita busca projetar a imagem de um país moderno, inovador e preparado para liderar um "novo mundo" sustentado pela alta tecnologia e pelo poder financeiro. Dessa maneira, o esporte se torna não apenas uma ferramenta de marketing internacional, mas também um instrumento de soft power, capaz de legitimar o regime internamente e suavizar sua imagem no exterior. Como define David Goldblatt, escritor esportivo britânico: “A história do futebol da Arábia Saudita é a história de como transformar petróleo em futebol, e o sucesso no futebol em legitimidade política.”
Glossário:
Sport Washing - Uso do esporte para melhorar a imagem de um país ou empresa e desviar atenção de práticas controversas
Referências:
CONSOLIN, B. Por que a Arábia Saudita está investindo tanto dinheiro no futebol? Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/futebol/arabia-saudita-futebol-e-parte-de-plano-global-mas-tambem-nacionalista/>.
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