Historicamente, o surgimento de novas tecnologias e empresas disruptivas leva os investidores a uma situação de otimismo frente ao mercado. Porém, nem sempre a estrutura das empresas é capaz de corresponder a essa alta valorização. Como consequência podem se configurar bolhas econômicas, as quais crescem exponencialmente sob a deposição de esperanças futuras por parte dos investidores sobre os resultados do mercado ou da empresa, até que, sem conseguir sustentar tal movimento, “estouram”.
Nesse contexto, a empresa que mais vem chamando atenção nos últimos anos é a Tesla. No início do mês de julho, ela tornou-se a montadora de carros mais valiosa do mundo, com valor de mercado de mais de US$ 270 bilhões, ultrapassando a Toyota e demonstrando uma valorização de ações de mais de 4.000% desde seu IPO, comparado aos 193% do S&P 500. Apesar disso, os resultados da companhia são menos expressivos que os da segunda colocada, algo que se repete, inclusive, em relação a outros concorrentes menores. Tendo em vista esse cenário, será que estamos presenciando o surgimento de uma nova bolha ou de uma companhia capaz de suportar tal otimismo por meio de seus resultados no longo prazo?
Um doloroso exemplo
Ao longo da história, já foram observadas diversas situações de otimismo exacerbado do mercado, que levaram a crescimentos vertiginosos na precificação de diferentes empresas. Como um recente exemplo desse fenômeno, temos a Bolha da Internet. Entre os anos de 1995 e 2000, ela atingiu principalmente as empresas de tecnologia da informação, que fazem parte do índice da bolsa de valores de Nova York, a Nasdaq. Esse foi o principal indicador da supervalorização das empresas, registrando 5.000 pontos em seu ápice, em março de 2000, frente aos 751 pontos registrados ao final de 1994, antes do início do fenômeno.
A combinação do rápido aumento dos preços das ações aliado à confiança de mercado que as empresas depositavam em lucros futuros, além da ampla disponibilidade de capital a partir de rodadas de investimento e a outros fatores, fez os investidores tornarem-se mais dispostos a assumir esse risco. Assim, as empresas, muitas ainda sem apresentar dados concretos de faturamento constante, usavam os IPOs - abertura das ações na bolsa de valores - para sustentar suas perdas líquidas, à medida que buscavam ganhar participação no mercado.
Entretanto, com a desaceleração da economia, devido principalmente aos constantes aumentos nas taxas de juros pelo Fed - Banco Central estadunidense - o nível de insegurança do mercado aumentou. Combinado a essa situação, os contínuos processos judiciais que empresas como Microsoft, Cisco, IBM e Dell estavam sofrendo frente a suspeitas de criação de monopólios. Esses dois fatores levaram a uma redução no otimismo do mercado, que desencadeou uma reação de liquidação das ações das empresas chamadas de “ponto com”, cenário que se retroalimentou e fez o Nasdaq cair mais de 10% em apenas 6 dias. Com a queda nos preços das ações e o desestímulo a novos aportes por parte dos investidores, muitas empresas foram à falência. Já outras, como Yahoo, Amazon, eBay e PayPal, amargaram grande desvalorização, mas conseguiram sobreviver reinventando seus modelos de negócios de forma que fossem mais sustentáveis a longo prazo. Desses, o caso mais famoso é o da empresa de Jeff Bezos, que deixou de ser apenas uma livraria virtual e passou a oferecer ainda mais produtos, migrando para um e-commerce no estilo marketplace onde terceiros poderiam anunciar seus produtos também.
A partir da análise da bolha da internet, pode-se concluir que a deposição de altas esperanças por parte do mercado frente a empresas disruptivas, mesmo que sem resultados sólidos, é uma situação que, mesmo depois de 20 anos e algumas bolhas, se perpetua. E atualmente a empresa que mais vem chamando atenção nesse contexto é a Tesla. Aspectos como seu alto valuation e o baixo número de investidores institucionais dentre seus sócios, dando lugar a investidores de papel, que aumentam o fluxo de negociações e, portanto, sua valorização, representam aspectos em comum entre a Bolha da Internet e a montadora, segundo o Observatório de Crise Financeira do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ).
No entanto, para entender mais como a Tesla se encaixa nesse cenário, é necessário recorrer à história da revolucionária e polêmica montadora.
Montadora Supervalorizada?
Em 2003, na Califórnia, surgia uma montadora de carros elétricos, criada por Martin Eberhardt e Marc Tarpenning. Ela tinha a intenção de produzir tais veículos a um preço mais acessível e em grande escala, acelerando a transição do mundo para uma energia mais sustentável. O foco da companhia em inovação sempre foi seu ponto de destaque, ainda mais com a chegada do sul-africano Elon Musk, em 2004, que havia liderado a primeira rodada de investimento da companhia e assumiu a presidência do conselho. Com isso, a Tesla Motors foi ganhando espaço no mercado, apesar de sua baixa e lenta produção de veículos. Foi o caso do modelo Roadster, um esportivo direcionado ao público de maior poder aquisitivo, entregue somente 2 anos após a encomenda de suas primeiras unidades, em 2006, devido à baixa capacidade da mesma de produzi-los.
No geral, o caminho da empresa foi repleto de altos e baixos. Problemas com a fabricação de seus carros, que já levaram a companhia a ter que fazer um recall de 4.300 das 5.000 unidades produzidas do Model 3 em 2018 por defeitos na porta, desencadearam diversos custos extras e polêmicas para a empresa. Além disso, aspectos como o baixo grau de escalabilidade na produção de novos veículos e seus componentes e o conturbado ambiente corporativo da empresa - fator que teve seu ápice com a saída de seus fundadores cinco anos após a criação, levando à ascensão de Musk ao cargo de CEO - também contribuíram para a incerteza gerada pela companhia.
Para piorar sua situação, durante o ano de 2008 houve a crise dos subprimes, que atingiu a bolsa americana e levou a Tesla, uma companhia financeiramente inconsistente e dependente de constantes aportes de capital, à beira da falência. Para amenizar a situação, foram necessárias medidas como a demissão de mais de 30% de sua força de trabalho, aliada a investimentos milionários feitos por outras montadoras. A principal delas foi a Daimler, dona das marcas Chrysler e Mercedes-Benz, que investiu por volta de US$ 50 milhões por 9% das ações da companhia, comprando diretamente de seus acionistas. Além de investimentos diretos, a montadora também necessitava de constantes rodadas de levantamento de capital, e esses aportes constantes tiveram um resultado negativo na companhia, que passou a endividar-se, situação que se mantém até hoje.
Em 2010, porém, ao reduzir os riscos de falência com novas rodadas de investimento, a Tesla realizou seu IPO, liberando 13,3 milhões de ações no mercado precificadas em US$ 17,00, arrecadando um total de US$ 226 milhões, representando então mais do que duas vezes sua receita anual, que na época era de US$ 117 milhões, tornando-se a primeira automobilística em mais de 60 anos a realizar tal processo. Hoje, suas ações estão avaliadas em US$ 1.485, representando um crescimento de mais de 4.500% desde sua abertura em bolsa.
Capacidade Produtiva
Para refletir o desenvolvimento e a maior eficácia de seus modelos, além de escalar sua operação, a Tesla buscava economias de escala, para reduzir o preço de seus carros e democratizar o acesso a eles. Com isso, surgiram os modelos S, 3, X e Y, de diferentes preços e estilos, possibilitando a companhia atingir diferentes públicos através de preços e marcas diferentes.
Ainda assim, para a fabricação desses veículos, buscando um maior controle da produção, a companhia possui um viés de integração vertical em sua Supply Chain. Para isso, foram criadas as Gigafactories, espaços industriais de maior extensão, desenvolvidos com o intuito de englobar todo o processo de produção de seus veículos, inclusive implementando baterias dos carros, ativos que representavam um limite natural à sua produção e hoje se tornaram fonte de receita ao vender para outras companhias, gerando por volta de 6% da receita da companhia em 2019. Ainda na questão produtiva, a companhia se diferenciou bastante no quesito inovação, trazendo para sua operação uma automatização cada vez maior, permitindo uma redução crescente em seus custos além de um incremento na capacidade produtiva.
No entanto, mesmo com tais avanços, a produção total da companhia em sua história só atingiu a marca de 1 milhão de unidades no primeiro trimestre de 2020, 17 anos depois da sua fundação. Durante o ano de 2019, a Tesla produziu mais de 365.000 veículos, enquanto concorrentes como Ford, General Motors e Toyota, com valor de mercado menores que o da montadora de Musk, foram capazes de fabricar 5.5, 7.7 e 11 milhões de unidades, respectivamente.
A Controvérsia da Valorização
Uma companhia que, desde sua criação, foi levada a buscar constantes rodadas de investimento para suprir sua baixa eficiência produtiva e a baixa demanda por seus produtos, atinge 17 anos após sua fundação a posição de montadora mais valiosa do mundo. Desde 2008, a companhia registra um déficit acumulado ao ano bilionário; que, independente de seus raros períodos lucrativos, não apresenta boas previsões quanto a um caixa positivo. Apesar de aumentos nas vendas, como o de 50% registrado em 2019 em relação ao ano anterior, a companhia parece não reduzir seu ritmo de perdas.
Assim, ao mesmo tempo em que obteve uma receita de US$ 24.6 bilhões em 2019, a Tesla angariou um prejuízo de US$ 860 milhões. Mesmo com tal cenário, a situação da empresa perante o mercado permanece positiva. Investidores apostam em seu futuro e especulam um crescimento cada vez maior, tanto na produção quanto nas vendas. Isso levaria a Tesla a de fato lucrar e crescer continuamente, para finalmente reverter esses resultados em lucros para seus acionistas. Além do aspecto especulativo, o viés da Tesla em termos de energia sustentável também trazem aspectos positivos à companhia, com uma crescente demanda por tais veículos.
Atualmente, com dívidas estimadas em mais de US$ 12.5 bilhões e um índice de dívida/EBITDA de 4.34 em junho de 2020, a situação da companhia parece melhorar aos poucos, registrando crescimento nas receitas e nas unidades produzidas.
Porém, o que leva de fato seu valor de mercado a estar maior do que companhias como a Toyota, General Motors e Ford, responsáveis por números de unidades vendidas e receitas muito maiores do que os da montadora de Musk?
O Futuro
Observando pelo lado histórico, a êxtase com novas tecnologias nem sempre se pôs como frutífera em termos de resultados para o investidor. Porém, mesmo assim, ainda surgem tais momentos, apostando por um futuro mais sólido. No caso da Tesla, sua capacidade de se reinventar e inovar em termos de produção e relacionamento com o cliente, apoiada por uma demanda crescente ao redor do mundo por tecnologia verde, principalmente na Europa, China e Estados Unidos, explicam o otimismo do mercado. Além disso, é perceptível a presença de maior solidez, vistos os positivos resultados de lucratividade dentro da companhia pelos últimos quatro trimestres seguidos, melhor sequência histórica. Estes, aliados às previsões positivas no crescimento da produção - que, segundo o Morgan Stanley atingirão 2 milhões de veículos em 2030 - e à possibilidade de redução nos custos de produção trazem à Tesla e ao mercado uma visão promissora sobre seu futuro.
Por outro lado, o histórico da companhia e o alto risco de um modelo de negócios inovador também devem ser levados em conta. Ainda há a falta de robustez concreta nos números da companhia, já que a dívida acumulada não para de crescer, demonstrando ainda sua incapacidade de arcar com encargos próprios.
Ao longo da história, diversos momentos de êxtase foram observados pelo mercado, e muita esperança foi posta em empresas que não davam lucro na expectativa de que um dia dessem e pudessem alavancar suas operações, como foi o caso da Amazon e de outras grandes. Porém, como visto, isso nem sempre se materializou.
Resta saber, portanto, o que será da Tesla: uma empresa capaz de gerar lucros e se reinventar, ou apenas mais uma vítima da alta especulação.
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